31/08/2010

Uma Triste Confissão

 CHARLES SPURGEON

Sermão 3530 - Vol 62

Pregado Por Charles Haddon Spurgeon - Publicado em 1916


... e dele não fizemos caso (Is 53.3)

Para alguns de nos não será fácil recordar a primeira vez em que ouvimos o nome de Jesus. Na tenra infância esse doce som era-nos tão familiar aos ouvidos quanto suaves as canções de ninar. Nossas recordações mais remotas associam-se à casa de Deus, ao altar da família, à Bíblia Sagrada, aos hinos sacros e à oração fervorosa.
Como pequenos Samuéis, éramos iluminados em nosso repouso pelas lâmpadas do santuário e despertados pelo som de um hino matinal. Muitas vezes um homem de Deus, recebido pela hospitalidade dos nossos pais, implorou uma bênção sobre nossas cabeças, desejando com toda sinceridade que pudéssemos cedo chamar o Redentor de bendito; e a essa petição ouvia-se um ardente "amém" de uma mãe. A nós pertencia uma feliz porção e uma herança boa; mesmo assim, "nasci na iniqüidade, e em pecado me concebeu minha mãe", e esses privilégios não foram suficientes para nos dar o amor Jesus e o perdão pelo seu sangue.

Freqüentemente somos levados a lamentar por pecados agravados pela luz clara como a do meio-dia — ordenanças subestimadas por sua própria freqüência — avisos desprezados, embora acompanhados de lágrimas paternais, e aversões sentidas no coração, se não expressas pelos lábios, para com as ricas bênçãos celestiais. Somos testemunhas, em pessoa, do fato de haver uma depravação inata, a praga de nascença deixada ao homem; e po demos testificar a doutrina de que a graça, e tão somente ela, pode mudar o coração. São nossas as palavras de Isaías com ênfase, apesar das influências santificadas que nos cercam; ao proferirmos a confissão: "...e dele não fizemos caso", os esconderijos de nossa infância, as companhias de nossa juventude e os pecados de nossa vida adulta unanimemente confirmam que falamos a verdade.

Iniciando, pois, com nossa própria experiência, somos levados a deduzir que aqueles a quem foram negadas nossas van tagens certamente serão compelidos a adotar a mesma linguagem humilde. Se o filho de pais consagrados, que pelo poder divino foi levado a conhecer o Senhor na juventude, se sente constrangido a reconhecer que houve um tempo em que não fez caso do Salva dor, será que o homem que teve uma educação irreligiosa, uma infância tumultuada, uma juventude permissiva e uma maturidade criminosa poderá adotar uma linguagem menos humilhante? Não; acreditamos que todo homem nessas condições, que agora se encontra redimido das mãos do inimigo, reconhece prontamente que outrora negligenciou cegamente as belezas do nosso glorioso Emanuel. E mais: nos aventuramos a desafiar a "igreja do primogênito" a apresentar um único santo que não tenha passadodiante da cruz com indiferença, ou até com desdém.

Não importa se revistamos o "nobre exército de mártires", "a devota comunhão dos profetas", "o glorioso grupo dos apóstolos", ou "a santa igreja espalhada pelo mundo", não descobriremos sequer um amante do adorável Redentor que não participe da confissão coletiva: "...e dele não fizemos caso."

A você eu peço que faça uma pausa para se perguntar se você faz caso dele agora; pois pode suceder que até o presente você não tenha visto nele "nenhuma beleza que o agradasse", ou não tenha tomado para si a exclamação da esposa: "Sim, ele é totalmente desejável." Se você se encontra neste estado infeliz, uma meditação sobre isso, sob a influência do Espírito Santo, será de grande valia; e rogo-lhe que, enquanto revelamos os segredos do que outrora era nossa prisão, você anseie intensamente a libertação da escravidão que o priva de viver alegremente aqui e o afasta da felicidade no futuro.

Primeiramente, proponho que nos esforcemos por tra zer vividamente diante de nossos olhos o fato de termos outrora feito pouco caso da pessoa de Jesus; em segundo lugar, veremos as causas dessa insensatez; e em terceiro, tentaremos despertar emoções próprias a essa contemplação contrita.

I. Vamos à casa do oleiro ver como éramos antes barro sem forma; lembremo-nos da "rocha de que fomos cortados" e da "caverna do poço de que fomos cavados", para repetirmos com profundo pesar as palavras do profeta: "... e dele não fizemos caso." Examinemos seriamente o diário da memória, pois nele estão fielmente registrados os nomes das testemunhas da nossa culpa.

Façamos uma pausa para considerar primeiro nossos atos pecaminosos visíveis, pois são como imensas voçorocas margeando a montanha da vida, comprovando a existência da rocha por baixo.

Poucos homens se arriscariam a ler sua própria biogra fia, se todos os seus feitos estivessem ali registrados. Poucos po dem olhar seu passado sem corar de vergonha. "Todos pecamos e carecemos da glória de Deus." Nenhum de nós pode alegar per feição. E verdade que, muitas vezes, uma descuidada auto-complacência nos faz exultar na virtude das nossas vidas, mas assim que a fiel memória desperta, instantaneamente ela dissipa essa ilusão! A memória agita sua varinha mágica e centenas de sapos surgem no palácio do rei; os rios límpidos tornam-se em sangue ao seu olhar; toda a terra fervilha de coisas nojentas. Onde imagi návamos pureza, surge a imperfeição. A grinalda de neve da satis­fação derrete diante do sol da verdade; a tigela açucarada dos aplausos torna-se amarga com lembranças tristes; sob a lupa da honestidade, as deformidades e irregularidades de uma vida apa rentemente correta tornam-se desgraçadamente visíveis.

Deixemos que o cristão cujos cabelos estão branqueados pela luz do céu conte a história da sua vida. Ele pode ter sido uma das pessoas mais corretas e moralistas, mas haverá uma mancha escura em sua história, pela qual ele derramará lágrimas de arre pendimento, pois naquela época ele não conhecia o temor do Senhor. Ou chamemos um heróico guerreiro de Jesus para relatar seus feitos; até ele também apresentará cicatrizes profundas, se qüelas dos ferimentos recebidos a serviço do Inimigo. Alguns entre os escolhidos, antes de sua regeneração, eram notórios pela culpa e poderiam escrever com Bunyan (em Grace abounding [Graça abundante]): "A minha vida natural, no tempo em que eu estava sem Deus no mundo, em verdade era segundo o curso deste mundo e o espírito que agora atua nos filhos da desobediên cia. Era meu prazer estar cativo nos laços de Satanás, cheio de injustiça, que operava tão intensamente, tanto em meu coração quanto em minha vida, que havia poucos que amaldiçoavam, pra­guejavam, mentiam e blasfemavam contra o santo nome de Deus tão bem como eu." E suficiente, porém, dizer que cada um de nós cometeu pecados que provam que "dele não fizemos caso".

Será que teríamos nos rebelado contra o Pai com tanta ousadia, se o seu Filho fosse o objeto do nosso amor? Será que teríamos passado por cima dos mandamentos de um Jesus vene rado? Seríamos capazes de desrespeitar sua autoridade se nossos corações estivessem ligados à sua adorável pessoa? Teríamos pe cado tão terrivelmente se o Calvário nos fosse precioso? Não, sem dúvida nossas nuvens de transgressões testificam nossa anterior falta de amor por ele. Se fizéssemos caso do Deus-Homem, será que teríamos negligenciado tão completamente suas reivindica ções? Esquecido totalmente suas palavras amáveis de comando? Será possível insultar a quem se admira; trair um rei amado; des respeitar a quem se estima ou zombar intencionalmente de quem se venera? Todavia, fizemos tudo isso e mais um pouco; pelo que a menor palavra de lisonja alegando amor natural por Cristo fica evidente aos nossos corações, agora honestos, como sendo tão odiosa quanto o silvo da serpente. Essas iniqüidades não constitui riam uma prova tão séria de que desprezamos nosso Senhor, caso fossem seguidas de pequenos serviços para ele. Mesmo agora, quando amamos seu nome, muitas vezes somos infiéis, só queagora nossa afeição nos ajuda a "nos arrastarmos em serviço para onde não podemos andar". Antes, porém, entre nossos atos pas sados não havia nenhum que fosse temperado com o sal do amor sincero; eram todos embebidos no fel da amargura. Ó amado, não nos esquivemos do peso dessa evidência, mas reconheçamos que nosso gracioso Senhor tem muito de que nos acusar, já que esco lhemos obedecer a Satanás em vez de ao Capitão da salvação e preferimos o pecado à santidade.

Deixemos o fariseu presunçoso gabar-se por ter nascido livre — nós vemos em nossos pulsos as marcas vermelhas dos ferros; que ele se glorie nunca ter sido cego — nossos olhos ainda conseguem lembrar a escuridão do Egito, em que não conseguíamos ver a estrela da manhã. Outros podem almejar a honra de uma salvação merecida — nós sabemos que nossa maior ambição pode ser apenas desejar o perdão e a aceitação tão-somente pela graça; lembramos bem o tempo em que o único canal da graça foi desprezado ou negligenciado por nós.

O Livro da Verdade ainda tem mais para testemunhar contra nós. Ainda não se apagou da memória a época em que não bebíamos desta sagrada fonte de água viva, nossos vis corações tinham colocado uma pedra sobre a boca do poço que nem a consciência podia remover. A poeira acumulada na Bíblia sujava os dedos; o abençoado volume era o menos procurado de todos os livros da biblioteca.

Embora hoje possamos dizer que a Palavra de Deus é "um templo incomparável onde temos prazer em estar, para con templar a beleza, a simetria e a magnificência da estrutura, para aumentar nossa reverência e estimular nossa adoração à Divinda de ali pregada e venerada" (Boyle), houve um período triste em nossas vidas em que recusamos pisar o chão precioso do templo, ou quando apenas por costume entrávamos nele, com passos apressados, inconscientes de sua santidade, desapercebidos de sua beleza, ignorantes de suas glórias e não reverentes à sua majestade.

Agora podemos apreciar a afeição em êxtase de Herbert expressa em seu poema:

O livro infinitamente doce! Que eu coma cada letra, como mel; E bom para curar que quer que fosse, Aliviar a dor, tirar o fel.

Naquele tempo um poema efêmero ou romance fútil podia comover nossos corações milhares de vezes mais facilmente do que este "livro de estrelas", este "deus dos livros". Ah, essa Bíblia negligenciada prova muito bem que estimamos Cristo muito pouco. Na verdade, se estivéssemos cheios de afeto por ele, teríamos procurado por ele em sua Palavra. Nela, ele se despe, mostrando íntimo de seu coração. Nela, cada página está manchada com gotas do seu sangue ou ornada com raios da sua glória. A cada momento o vemos, divino e humano, morrendo e mesmo assim vivo, sepultado e agora ressurreto, Vítima e Sacerdote, Príncipe e Salvador, e todos esses diferentes papéis, relações e condições o tornam valioso para seu povo e precioso para seus santos. Ah, ajoelhemo-nos diante do Senhor e reconheçamos que"dele não fizemos caso", ou teríamos andado com ele nos campos das Escrituras e tido comunhão com ele nos canteiros da inspiração.

O Trono da Graça, que por tanto tempo não visitamos, igualmente proclama nossa culpa anterior. Raramente nossas sú plicas eram ouvidas no céu; nossas petições eram formais e sem vida e morriam nos lábios desatentos que as pronunciavam. Ah, que crime quando não nos consagrávamos à adoração, o incensário do louvor não levava um aroma aceitável ao Senhor, nem os frascos da oração exalavam um perfume precioso!

Sem serem branqueados pela devoção, os dias do calendário ficavam sujos pelo pecado; não sendo impedido por nossas súplicas, o anjo do julgamento acelerava sua vinda para a nossa destruição. A lembrança daqueles dias de silêncio pecaminoso nossas mentes humilham-se no pó; não podemos nos achegar ao trono de misericórdia sem adorar a graça que recebe com boas-vindas aqueles que o desprezaram.

Todavia, por que "nosso coração não esteve em peregrinação"? Por que não cantamos a "melodia que todos ouvem e temem"? Por que não nos alimentamos do "banquete da igreja", do "maná precioso"? Que resposta podemos dar mais completa e plena do que esta: "dele não fizemos caso"? Nossa pouca consideração de Jesus afastou-nos de seu trono. A afeição verdadeira teria conseguido o pronto acesso que a oração dá ao aposento secreto de Jesus recebendo abundância de amor. Podemos abandonar agora o trono? Não; nossos momentos mais felizes são quando nos ajoelhamos, pois assim é que Jesus se manifesta a nós. Apreciamos a companhia deste que é o melhor amigo, pois sua presença divina "traz tal beleza interior para a casa onde ele habita, que os palácios mais suntuosos invejam seu esplendor". Com prazer procuramos o lugar secreto, pois ali nosso Salvador nos permite desabafar nossas alegrias e tristezas, passando-as para ele.

Ó, Cordeiro de Deus! Nossa negligência na oração nos leva a confessar que houve um tempo em que não víamos em ti aparência nem formosura.

Ademais, o fato de evitarmos o povo de Deus, confirma a verdade humilhante. Nós que agora fazemos parte do "exército sagrado dos eleitos de Deus, nos alegrando na amizade dos justos, éramos outrora "estrangeiros e peregrinos". A língua de Canaã era aos nossos ouvidos um gaguejar sem significado, do qual escarnecíamos, uma gíria grosseira que não tentávamos imitar, ou uma "língua estranha" além da nossa capacidade de interpreta ção. Os herdeiros da vida eram ou desprezados por nós como "objetos de barro, obra das mãos de oleiro", ou nos retirávamos da companhia deles cientes de que não éramos companheiros dignos dos "nobres filhos de Sião, comparáveis a ouro puro." Muitas vezes olhamos cansados para o relógio quando, em companhia de alguém, o tema era espiritual demais para nossa compreensão fraca; tantas vezes preferimos a amizade de mundanos risonhos à de crentes mais sérios.

Será preciso indagar qual a origem desta antipatia? O rio amargo não se compara ao rio do Egito, silencioso quanto à sua nascente: ele proclama sua origem abertamente, e o ouvido da auto-preferência não pode ser surdo à voz da verdade — "Não amastes os servos, porque não fizestes caso de seu mestre; nem convivestes entre os irmãos, pois não estabelecestes amizade com o primogênito da família."

Uma das evidências mais claras da alienação de Deus é a falta de vínculo com seu povo. Num grau maior ou menor cada um de nós já passou por isso. E verdade que há certos cristãos com quem gostávamos de estar; contudo, havemos de convir que esse prazer em sua companhia devia-se mais à amabilidade de suas maneiras ou ao estilo cativante de falarem, do que à sua exce lência intrínseca. Avaliamos a jóia pelo seu engaste, mas um seixo comum no mesmo anel teria igualmente nos chamado à atenção. Os santos, como santos, não eram nossos amigos diletos, nem podíamos dizer: "Sou amigo de todos os que temem a Deus."

Tais sentimentos são produto da mais elevada estima peloRedentor, e sua ausência anterior constitui uma prova conclusiva de que nesse tempo "dele não fizemos caso". Não temos mais necessidade de ajuda nesta auto-condenação.

Domingos profanados partem como guerreiros de um clã selvagem da mata fechada do tempo desperdiçado; eles investem contra osantuário deserto, ameaçando-o com uma vingança ter rível, se o escudo de Jesus não nos protegesse; as cordas de seus arcos são ordenanças negligenciadas, e suas flechas são mensagens de misericórdia desprezadas.

Todavia, para que esses acusadores? A consciência, guarda da alma, já viu o suficiente. Ela afirmará que viu nossos ouvidos fechados para a voz convidativa do amigo dos pecadores; e que por diversas vezes desviamos os olhos da cruz, quando Jesus estava bem visível.

II. Iniciaremos agora um exame das causas ocultas deste pecado. Uma vez curada a doença, pode ser útil saber sua origem, para servir a outros e beneficiar a si mesmo.

Nossa frieza em relação ao Salvador resultou primeiramente do mal natural de nossos corações. Podemos discernir claramente por que o dissoluto e o perverso têm pouco apreço por pureza e excelência: a mesma razão pode ser dada do nosso desprezo pela encarnação da virtude na pessoa de nosso Senhor Jesus. O pecado é loucura que desqualifica a mente para o julgamento sóbrio, cegueira que torna a alma incapaz de apreciar a beleza moral; é de fato uma perversão de todas as capacidades em tal escala que, sob sua terrível influência, os homens "ao mal chamam bem e ao bem, mal; fazem da escuridade luz e da luz, escuridade; põem o amargo por doce e o doce por amargo." Para nós, em nossa condição caída, demônios muitas vezes parecem ser mais justos do que anjos; confundimos os portões do inferno com os portais da glória e preferimos as mentiras camufladas de Satanás às verdades eternas do Altíssimo. Vingança, luxúria, ambição, orgulho e vontade-própria são mui freqüentemente exaltados como os deuses da idolatria dos homens, enquanto san tidade, paz, contentamento e humildade são vistos como indignos de uma consideração mais séria. Ah, pecado, o que foi que fizeste! ou melhor, o que desfizeste! Não te contentaste em roubar à humanidade a coroa, desviá-la de seu reino feliz, estragar suas vestes reais e saquear seu tesouro; tens feito muito mais do que isto! Não basta degradar e desonrar; feres tuas vítimas, cegas-lhes os olhos, fechas seus ouvidos, confundes seu julgamento e amordaças sua consciência; sim, o veneno de tua flecha malévola contamina a fonte com morte. Tua malícia penetrou o coração da humanidade e, por conseguinte, encheu suas artérias com corrupção e seus ossos com depravação. Sim, monstro, te tornaste um assassino, pois nos deixaste mortos em transgressões e pecados!

Este último termo desvenda todo o mistério, pois se estamos espiritualmente mortos, naturalmente é impossível conhecer e reverenciar o Príncipe da glória. Acaso um morto pode ser levado ao êxtase ou pode seu corpo ser motivado a contemplação sublime? Tente estimular um corpo sem vida, enquanto ele ainda não virou banquete para os vermes e a moldura ainda está completa, embora sem vida. Traga para perto dele o alaúde e a harpa, deixe que melodias suaves e harmonias lindas tentem induzir esse homem ao prazer: ele não vai sorrir com a melodia harmoniosa, nem se comoverá com a cadência melancólica; sim, ainda que a orquestra do redentor extravasasse com fulgor sua música, ele se manteria surdo ao encanto celestial.

Você quer assaltar a cidade por outro portão? Então, coloque perante os olhos desse ser as mais lindas flores colhidas desde que as plantas do Éden foram criadas. Será que ele atentará para a delicadeza da rosa ou a brancura do lírio? Não, esse homem não reconhece a ternura delas mais do que as águas do Nilo percebem a flor-de-lótus que sustenta em seu leito. Venham, ainda, as tâmaras da Arábia e os ventos impregnados de odores aromáticos do Ceilão, e que o incenso de substâncias fragrantes, de o olíbano e mirra, exale diante dele; eis que suas narinas permanecem tão imóveis quanto uma estátua, e seus lábios não manifestam nenhum prazer. Sim, você pode trazer auxílios mais poderosos, como o estrondo de uma avalanche, o bramido de cataratas, a fúria do oceano, o uivo dos ventos, o ribombar de um terremoto e o rebôo de um trovão: ainda que todos esses sons unidos de uma só vez ressoassem, não levantariam o dormente de seu diva fatal. Está morto, e este fato desvenda todo o mistério. Assim tambémnós, agora avivados pelo Espírito Santo, estivemos um dia mortos no pecado e "dele não fizemos caso". Eis aí a raiz de todos os nossos delitos, a origem de toda a nossa iniqüidade.

As causas secundárias da loucura que cometemos estão logo abaixo da superfície e requerem apenas um momento de observação. O amor próprio contribuiu em muito para que maltratássemos o "amigo dos pecadores". A presunção com nossos méritos próprios fez-nos indiferentes às reivindicações daquele que buscava para nós uma justiça perfeita. "Os sãos não precisam de médico": nos sentíamos insultados pela linguagem de um evangelho que nos falava como se fôssemos seres indignos. A cruz pode exercer pouco poder onde o orgulho oculta a necessidade de perdão; um sacrifício é pouco valorizado quando não estamos conscientes de que precisamos dele. Em nossa opinião, éramos as criaturas mais nobres; a oração do fariseu poderia sinceramente provir de nós. Ganhamos algumas ninharias aqui e ali desonestamente mas, no geral, pensávamos que estávamos nos tornando "ricos e abastados"; e mesmo quando sob a poderosa voz da lei éramos defrontados com nossa pobreza, ainda esperávamos, através da obediência futura, reverter a sentença, e estávamos totalmenterelutantes em aceitar a salvação que exigia uma renúncia de todos os méritos e uma confiança simples no Redentor crucificado. Jamais deixaríamos a nossa lida nem abandonaríamos a "teia de aranha" do esforço próprio, até que todo o trabalho nos fosse tirado das mãos e nossos dedos se tornassem incapazes; somente então nos vestiríamos com a justificação pela graça. Ninguém pode pensar muito de Cristo até que pense pouco de si mesmo. Quanto mais baixa for a visão de nós mesmos, tanto mais elevados serão os pensamentos sobre Jesus; somente quando o aniquilamento próprio for completo, o Filho de Deus poderá ser "tudo em to dos".

A vangloria e o amor-próprio são férteis progenitores do mal. Crisóstomo chama o amor-próprio de uma das três grandes armadilhas do maligno; e Bernardo o denomina "uma flecha que perfura a alma e a mata; um inimigo insensível e astuto, não percebido". Sob a má influência deste poder nós comumente amamos mais quem nos causa mais danos, pois o adulador que ali menta nossa vaidade com clamores agradáveis de "paz, paz", é muito mais considerado do que o bendito Jesus, que com seriedade nos adverte de nosso estado doentio. Mas, quando a autoconfiança é retirada — quando a alma é despida pela convicção de pecado, quando a luz do espírito revela o estado repugnante do coração, quando o poder da criatura fracassa, quão precioso é Jesus! Como o marujo prestes a naufragar agarra-se à tábua flutuante, o moribundo olha para o médico, e o criminoso valoriza a clemência — assim estimamos o libertador das nossas almas como Príncipe dos reis da terra. A repugnância de si mesmo proporciona uma paixão ardente pelo "amante de nossas almas" cheio de graça; a auto-complacência esconde de nós sua glória.

O amor ao mundo também tem sua participação no mau uso deste querido amigo. Quando ele bateu na porta, nós lhe recusamos a entrada porque outro já havia entrado. Já tínhamos escolhido outro esposo a quem basicamente entregamos o coração. "Dá-me riquezas", diz alguém. Jesus responde: "Eis-me aqui; eu sou melhor que as riquezas do Egito, e vale mais a pena passar vergonha por mim do que desejar tesouros escondidos." Mas o outro replica: "Tu não és a riqueza que procuro; não busco uma riqueza assim sem substância, ó Jesus! Não me importa uma riqueza para o futuro — desejo uma riqueza para o presente; quero um tesouro em que posso pôr a mão agora; quero ouro para comprar uma casa, uma fazenda, bens; anseio por jóias brilhantes que adornem meus dedos; não te peço aquilo que está por vir; pensarei nisto depois que os anos passarem."

Um outro de nós suplica: "Eu peço por saúde, pois estou doente." O melhor dos médicos aparece e gentilmente promete: "Vou curar a sua alma, tirarei a lepra e o tornarei são." "Não, não", respondemos, "não foi isso o que pedi, ó Jesus! Peço um corpo forte, para que eu possa correr como Asael ou lutar como Hércules; quero me livrar da dor física, mas não te peço saúde espiritual, porque não é isso que quero." Um terceiro implora por felicidade. "Ouve-me", disse Jesus, "meus caminhos são agradáveis e minhas veredas, tranqüilas." "Não é essa alegria que procuro", replicamos precipitadamente. "Quero um cálice transbordante, para saboreá-lo deliciosamente; tenho paixão por noitadas fes tivas e dias alegres; quero danças, festanças e outros prazeres co muns deste mundo; reserve o seu porvir para os fanáticos — que eles vivam de esperança; eu prefiro este mundo e o presente."

Assim cada um de nós, a seu modo, dirigiu seu amor para coisas terrenas e desprezou as do alto. Certamente não foi um pintor malvado que rascunhou nossas vidas com seu lápis de desenho: "O intérprete levou-os novamente, e os colocou numa sala onde havia um homem que não podia olhar para outro lado senão para baixo e segurava na mão um escovão; acima dele ha via outro com uma coroa celestial na mão; este lhe ofereceu a coroa em troca do escovão; o homem, porém, sem olhar para cima nem prestar a menor atenção, varreu para junto de si a palhae o pó

Enquanto amamos o mundo, "o amor do Pai não está em nós," nem o do Filho Jesus. Não se pode servir a dois senho res. O mundo e Jesus jamais estarão de acordo. Precisamos poder cantar a primeira parte da estrofe de Madame Guion, antes de podermos concordar com sinceridade com a segunda:

Adeus! prazeres vãos daqui, Esportes e alegrias mil, Pra mim não têm sabor. Felicidade, só na cruz, O resto, vi com meu Jesus, É lixo sem valor.

Seria uma grande omissão não observarmos que nossa ignorância sobre Cristo foi a principal causa de nossa falta de amor por ele. Agora compreendemos que conhecer a Cristo significa amá-lo. É impossível ter uma visão de sua face, contemplar sua pessoa ou entender sua missão, sem sentir nossas almas aquecidas por ele. Tal é a beleza de nosso bendito Senhor, que todo homem, exceto o espiritualmente cego, presta uma pronta homenagem a ele.

Não é preciso eloqüência para apresentar Cristo àqueles que o vêem pela fé, porque ele é seu próprio Orador. Sua glória fala, sua boa vontade fala, sua vida fala e, acima de tudo, sua morte fala. O que estes falam sem emitir sons o coração aceita com boa disposição.

Jesus "está oculto da visão do mundo em geral" pela incredulidade intencional da humanidade; sem isso, a visão dele teria causado profunda veneração. A humanidade desconhece a jazida de ouro escondida na mina de Jesus Cristo, do contrário certamente a explorariam dia e noite. Tampouco descobriram a pérola de grande valor, de outra forma teriam vendido tudo o que possuem para comprar o campo onde ela se encontra. A pessoa de Cristo cala toda eloqüência que quer descrevê-lo; as mãos do artista ficam paralisadas ao escolher as cores adequadas para pintá-lo; e o escultor não saberia por onde começar a talhar a imagem dele nem que fosse possível em uma pedra maciça de diamante. Nada existe na natureza comparável a ele. Diante de seu resplendor o brilho do sol escurece; sim, nada pode competir com ele, e o próprio céu enrubesce com a simplicidade do seu semblante, ao contemplar este "totalmente desejável". Ah, vocês que passam por ele sem considerá-lo, bem disse Rutherford: "Se o conhecêssemos e víssemos sua beleza, nosso amor, nosso coração, nossos desejos convergiriam nele. O amor, por natureza, lança sobre o objeto amado seu espírito e força, bem como tudo o que é bom e digno de amor; e o que existe mais belo do que Cristo?" O mundo judeu crucificou-o porque não reconheceram seu rei, e nós o rejeitamos porque não tínhamos visto que ele preenche nossos anseios nem acreditávamos no seu amor por nossas almas. Todos podemos proferir este monólogo de Agostinho: "Existia uma grande nuvem escura de vaidade diante dos meus olhos, de modo que eu não podia ver o sol da justiça e a luz da verdade; sendo filho das trevas, eu estava envolto em escuridão; eu amava as minhas trevas por que não conhecia a tua luz; eu era cego e amava minha cegueira, e andava de escuridão em escuridão; mas tu, Senhor és meu Deus, que me tiraste das trevas e da sombra da morte; tu me chamaste para essa gloriosa luz, e eis que agora vejo!"

III. Chegamos agora à parte prática desta meditação e consideraremos as emoções despertadas por dela.

Primeiro, vemos que a profunda tristeza penitente nos fica bem. Tal qual a lágrima é a melhor rega para o túmulo, e as cinzas são a coroa certa para a cabeça de luto, assim os sentimen tos de penitência são a maneira certa de lembrar uma conduta que abandonamos agora e repugnamos. Não conseguimos entender o cristianismo daqueles que são capazes de narrar a história de seu passado com satisfação. Já vimos pessoas recontarem seus crimes com tanto prazer quanto um velho soldado descreve suas faça nhas na guerra. Tais pessoas chegam a exagerar seu mal para tornar seus casos mais dignos de admiração, e a gloriar-se de seus pecados do passado como se fossem ornamentos de sua nova vida. Para estes, repetimos as palavras de Paulo aos romanos: "Agora vos envergonhais." Há ocasiões em que é próprio, bené fico e louvável que o convertido descreva a triste história de suavida anterior; assim a graça é glorificada e o poder divino exaltado, e a história de sua experiência pode servir para despertar fé em outras pessoas que se julgam abomináveis demais; é necessário, porém, que isto seja feito num espírito correto, que expresse um sincero arrependimento e pesar. Não objetamos a que se narre os feitos do estado anterior à regeneração mas, sim, o modo como isso geralmente ocorre. Se o pecado tem o seu monumen to, que seja num monte de pedras arremeçadas pelas mãos da excomunhão — não um mausoléu erigido por mãos de ternura. Vamos dar-lhe o enterro de Absalão — não permitindo que descanse no sepulcro real.

A libação de lágrimas não deve ser a única oferta no santuário de Jesus; vamos também exultar com alegria indlzível. Se temos de lamentar pelos pecados cometidos, quanto mais havemos de nos alegrar pelo seu perdão! Se o nosso estado anterior enche-nos os olhos de lágrimas, será que o novo estado em que nos encontramos não fará nossos corações pularem de alegria? Sim, precisamos e iremos louvar o Senhor pela sua graça soberana e incomparável. A nós cabe entoar-lhe um canto eterno pela mudança de nosso estado; ele nos deu discernimento, e fê-lo por mera e imerecida misericórdia, uma vez que, assim como outros, "dele não fizemos caso." Certamente Jesus não nos elegeu para a alta honra de sermos um com ele por causa de nosso amor por ele, pois de fato confessamos exatamente o oposto. Dizem que, ao perguntarem ao santificado antepassado deste escritor, o Dr.Rippon, por que Deus escolheu seu povo, ele respondeu: "Porque o escolheu", e quando repetiu-se a pergunta, ele novamente res pondeu: "Porque o escolheu, e se me perguntarem isso mais cem vezes, não poderei dar-lhes outra razão." "Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado." Que a nossa gratidão pela graça divina redunde em louvores; que todo o nosso ser entoe honras a ele, o qual nos elegeu de modo soberano, nos redimiu por sangue e nos chamou pela graça.

Não haveríamos também de prostrarmos profundamente o espírito com a lembrança da nossa culpa? O objeto da pre sente contemplação não deveria ser uma punhalada no coração do orgulho? Chegue mais perto, cristão, embora agora revestido da armadura da salvação, e veja como andava outrora nu. Não se gabe de suas riquezas, lembre-se de como era um simples mendigo; nem se glorie em suas virtudes, elas são estranhas ao seu coração; lembre-se das plantas mortíferas — a vegetação nativa da quele solo mau. Incline-se com o rosto no chão e, apesar de não poder ocultar-se sob as asas como os anjos, permita que o arrependimento e auto-repugnância cubram-no. Não pense que hu­mildade é fraqueza; ela prove o tutano que é a força dos ossos. Incline-se para vencer; prostre-se e torne-se invencível.

Se tivéssemos uma visão correta de nós mesmos, a ninguém julgaríamos vil demais para ser regenerado e não consideraríamos uma desonra carregar nos ombros o mais errante do rebanho. Entre nós há muito do espírito: "Espere-me passar, porque sou mais santo do que você." Aqueles que Jesus teria de agarrar pela mão nós não arrastaríamos nem com uma tenaz; tal o orgu lho de certos professores, que deveriam ser reconhecidos como legítimos sucessores dos antigos fariseus. Se fôssemos mais parecidos com Cristo, estaríamos mais prontos a ter esperança pelos desesperados, valorizar os indignos e amar os que estão atolados em pecado.

A seguinte história, que o autor ouviu de um estimado ministro da Igreja da Inglaterra, talvez possa, como um fato, ser mais eficaz que as palavras. Certo pastor de uma paróquia na Irlanda havia visitado todas as pessoas abrangidas por seu rebanho, exceto uma. Tratava-se de uma mulher com uma vida depravada; ele temia que o fato de entrar na casa dela desse motivo de ofensa aos maldizentes, trazendo desonra para o seu ofício. Num domingo, percebeu a mulher entre os presentes ao culto, e durante semanas notou como ela dava atenção à Palavra da Vida..Pensou, também, ouvir, entre o som das respostas, uma voz doce e sincera, confessando solenemente seu pecado e implorando misericórdia. Compadeceu-se daquela filha de Eva decaída; ele ansiavapor perguntar-lhe se de fato seu coração havia sido quebrantado e desejava intensamente falar-lhe sobre a graça abundante, na espe rança de que ela tivesse sido salva do fogo. Mesmo assim, a mesma atitude sensível o impediu de entrar na casa; vez após vez ele passou por sua porta com um olhar compassivo, ansioso pela salvação dela, porém zeloso de sua própria honra. Isso durou um bom tempo, mas um dia ela o chamou e, em prantos que revela vam um coração quebrantado, disse-lhe: "Ah, senhor! Se o seu Mestre tivesse estado nesta aldeia metade do tempo do senhor, ele já teria vindo falar comigo há muito, pois sou a pior das pecadoras e preciso mais do que ninguém da sua misericórdia." Podemos até imaginar o coração daquele pastor derretendo ao ver sua atitude ser condenada de modo tão cuidadoso na comparação com seu Mestre amoroso. A partir desse dia, ele decidiu não negligenciar ninguém, mas sim reunir todos os "marginalizados em Israel". Meditando nisso, que possamos, para nosso próprio proveito, ser constrangidos a fazer o mesmo, possibilitando que alguma alma tenha motivo para bendizer o nome de Deus porque os nossos pensamentos foram dirigidos para ela. Que o Espírito da graça, que prometeu nos "guiar a toda a verdade" por meio de sua santa influência, santifique para o nosso bem essa visita à casa onde nascemos, despertando em nós todas as emoções conveni entes e guiando-nos para ações compatíveis com este grato retrospecto.

FONTE E TRADUÇÂO: Charleshaddonspurgeon.com

          VIA: Uma Triste Confissão | Projeto Spurgeon

30/08/2010

Não tente evitar a Guerra – M. Lloyd-Jones

 

É um grande perigo evitar-se a guerra. Isso é diferente. O homem que evita uma guerra reconhece que há um combate, mas o evita.

Ora, há muitas maneiras de se fazer isso. Uma, é, naturalmente, retirar-se para uma espécie de pietismo. Foi o que muitos evangélicos fizeram na última quarta parte do século passado. Eles diziam, Ora, não vamos tocar nesse novo ensino; não vamos ler aos seus livros; não vamos fazer coisa alguma acerca deles. Se havemos de preservar a nossa fé, temos que dar as costas a tudo isso, e temos que cultivar a nossa vida religiosa. E assim eles descreviam e liam livros para a vida de devoção, e dessa maneira devota procuravam edificar-se. Não tinham contato nenhum com o grande combate que se travava fora.

Há muitos que ainda adotam a mesma atitude. Esta às vezes toma hoje a forma de dizer-se que sempre devemos ser positivos. Essas pessoas têm forte aversão pelo negativo. Não gostam dos que lhes apontam o que está errado e o que não deve ser feito. Sempre seja positivo, dizem elas. Por que você não nos dá somente a mensagem positiva? Por que você precisa estar sempre expondo o erro e demonstrando que isso está errado?

Ou tais pessoas deleitam-se no fato de que não são polemistas. São, na verdade, gente excelente, que nunca ofende ninguém, e a quem todos elogiam! Mas as Escrituras nos dizem que o homem a quem todos louvam está numa condição muito perigosa. "Ai de vós quando todos os homens de vós disserem bem" (Lucas 6:26). Não devemos desejar que certas pessoas falem bem de nós. Elas não falaram bem do nosso Senhor, e há algo de seriamente errado com os Seus seguidores, se elas falam bem deles.

Outro perigo em conexão com a fuga da guerra e com o evitá-la é o perigo de refugiar-se numa espécie de escolasticismo ortodoxo. Que é que eu quero dizer com isso? É o perigo de dizer--se: não posso me incomodar com tudo o que essas pessoas estão dizendo. Está tudo errado. Posso ler os grandes escritores antigos, e vou dedicar todo o meu tempo a isso. E assim vocês se tornam um conventículo girando em torno do seu próprio círculo e não fazendo contato com o homem da rua, com o homem do mundo e com as multidões deste país que se acham fora da Igreja Cristã. E uma vida muito cômoda. Não há vida mais feliz do que a do pesquisador eru¬dito, do homem que passa o tempo lendo e depois discutindo o assunto da leitura feita com amigos que pensam do mesmo modo.

Todavia, enquanto vocês podem estar fazendo isso, o mundo marcha para inferno! Aí está esse terrível perigo de evitar-se a guerra.

fonte:  Martyn Lloyd-Jones: Não tente evitar a Guerra – M. Lloyd-Jones

29/08/2010

Débora, Uma Mãe em Israel

 

Débora, Uma Mãe em Israel

Algumas pessoas são líderes improváveis. Superficialmente, elas parecem não ter as características que geralmente associamos com grandeza e poder. Davi, por exemplo, era um jovem pastor de ovelhas, um sonhador que escrevia cânticos e tocava harpa – qualidades geralmente não procuradas quando você escolhe alguém para derrotar inimigos. No entanto, Deus o chamou não apenas para ser um homem de guerra mas também rei de todo o Israel. Por quê? Porque Davi tinha algo mais importante do que habilidade militar ou sangue real. Ele tinha fé em Deus.

Na época dos juízes, uma mulher chamada Débora tornou-se líder de Israel. Pelos nossos padrões, ela também era uma candidata improvável para essa tarefa tão relevante. A Bíblia fala pouco sobre suas credenciais, a não ser que era esposa e mãe (Jz 4.4; Jz 5.7), o que não a qualificava para dirigir um país. Porém, Débora tinha a mesma vantagem que Davi: ela tinha fé em Deus.

Numa época em que Israel andava aos tropeços e cada homem fazia aquilo que parecia certo aos seus próprios olhos (veja Jz 17.6; Jz 21.25), Deus escolheu uma mulher de grande fé que estava disposta a segui-lO em obediência.

As Escrituras dizem que Débora era uma profetisa, significando que Deus lhe falava e ela transmitia Sua Palavra ao povo. Ela era uma juíza, portanto, julgava as pessoas que vinham até ela para resolver suas contendas. Naturalmente, ela também era esposa e mãe.

Seu feito mais conhecido ocorreu quando os israelitas clamaram a Deus por libertação depois de vinte anos de opressão sob o jugo de Jabim, rei de Canaã. O poderoso Jabim tinha 900 carros de ferro e governava a partir de Hazor, no Norte de Israel. Débora, que vivia no Sul, fora de Jerusalém, nas regiões montanhosas de Efraim, convocou Baraque, da tribo de Naftali, da região de Hazor. Quando Baraque chegou, Débora corajosamente transmitiu-lhe o plano de Deus: “Porventura, o Senhor, Deus de Israel, não deu ordem, dizendo: Vai, e leva gente ao monte Tabor, e toma contigo dez mil homens dos filhos de Naftali e dos filhos de Zebulom? E farei ir a ti para o ribeiro Quisom a Sísera, comandante do exército de Jabim, com os seus carros e as suas tropas; e o darei nas tuas mãos” (Jz 4.6-7).

Hoje, vivendo em um mundo dirigido pelo sucesso e pelas realizações materiais, é fácil esquecer que Deus não deseja tanto as nossas habilidades, mas sim a nossa vontade, o nosso querer que vem da fé.

Baraque estava disposto a obedecer, mas insistiu que Débora fosse com ele. Ela concordou, porém disse a Baraque que assim ele cederia a uma mulher a honra de capturar Sísera.

Naquele dia Deus sustentou Israel, como Débora sabia que Ele faria. O Senhor enviou uma chuva torrencial que inundou o ribeiro Quisom e fez com que a armada aparentemente invencível de Sísera atolasse na lama. Este fugiu e foi engodado por Jael, outra mulher, que cravou uma estaca de tenda em sua cabeça e o matou. Dessa maneira, Deus libertou Israel.

Mais tarde, Débora escreveu um belo cântico (Jz 5) que exalta a Deus e revela muito sobre sua própria pessoa. Ela era uma mulher de profunda fé e grande discernimento espiritual. Havia avaliado a sombria situação de seu país com perspicácia (Jz 5.6-7), compreendeu o motivo da decadência (idolatria, v.8) e assumiu a responsabilidade pela nação (vv. 7,12). Ela tinha tanta autoridade que, quando convocou Baraque, ele veio imediatamente sem questionar sua autoridade ou suas instruções. Débora é a única mulher na Bíblia que não apenas governou Israel como também deu ordens militares a um homem, e isso com a bênção de Deus.

Quando ela mandava reunir as tropas, esperava que elas se apresentassem. Aos que ignoravam o chamado, ela amaldiçoava: “Amaldiçoai a Meroz, ...amaldiçoai duramente os seus moradores, porque não vieram em socorro do Senhor” (Jz 5.23). Débora provavelmente não conseguia entender por que esses combatentes de Israel tinham tão pouca fé em Deus.

Por um lado, Débora aparentava ser uma mulher “dura” no confronto, mas também parecia extremamente maternal. Somente uma mãe que se importa com seus filhos pensaria em descrever a mãe de Sísera aguardando ansiosamente que seu filho voltasse para casa, preocupada com sua demora em voltar da batalha (v.28).

É interessante observar que não há evidência bíblica de que Débora tenha usurpado a autoridade masculina. É triste dizer que, provavelmente, existia pouca autoridade masculina fiel a Deus naqueles dias. Israel estava em condição espiritual tão lamentável que Deus envergonhou a nação daqueles dias depositando o mais alto cargo de liderança nas mãos de uma mulher.

Hoje, vivendo em um mundo dirigido pelo sucesso e pelas realizações materiais, é fácil esquecer que Deus não deseja tanto as nossas habilidades, mas sim a nossa vontade, o nosso querer que vem da fé.

Podemos lembrar que a história das missões modernas está igualmente repleta de mulheres de grande fé a quem Deus colocou em posições de enorme responsabilidade. Nas selvas da Colômbia e da Venezuela, por mais de 50 anos, Sophie Müller implantou centenas de igrejas, até que o Senhor finalmente a levou em outubro de 1995. A sua autobiografia, publicada pela Missão Novas Tribos, é intitulada His Voice Shakes the Wilderness (A Voz de Deus Faz a Selva Estremecer).

Depois que Jim Elliot, Nate Saint e três outros missionários foram mortos no Equador pelas flechas dos índios Huaorani (Aucas) em 1956, duas mulheres os substituíram: Elisabeth Elliot, viúva de Jim, e Raquel Saint, irmã de Nate. A senhorita Saint ficou no Equador até sua morte em 1994, conduzindo os índios a Cristo, ensinando-os e ministrando-lhes a Palavra de Deus.

Baraque, sem dúvida, foi um ótimo militar, e seu nome está registrado em Hebreus 11 como homem de fé. Porém, ele mesmo teria capturado Sísera se tivesse confiado um pouco mais em Deus. Débora, por outro lado, era uma simples esposa e mãe, mas sua fé a tornou um vaso muito mais útil para o Senhor do que alguém poderia imaginar.

A Bíblia ensina que nosso tempo na terra é curto: “Que é a vossa vida? Sois, apenas, como neblina que aparece por instante e logo se dissipa” (Tg 4.14). Muitas pessoas podem abalar montanhas com suas credenciais e construir reinos com suas aptidões. Mas, no final, o que contará para a eternidade não será aquilo que realizamos com nossas habilidades, mas o que Deus fez através de nós por meio de nossa fé. (Lorna Simcox, Israel My Glory - http://www.chamada.com.br)

Lorna Simcox é redatora-sênior de The Friends of Israel.

Publicado anteriormente na revista Chamada da Meia-Noite, Fevereiro de 2007

fonte: Débora, Uma Mãe em Israel | Artigos | Chamada

28/08/2010

O Espírito Santo Ministra aos crentes

 

“Mas, quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar.” Jo 16.13,14

Antes da paixão de Jesus. Ele prometeu que o Pai e Ele enviariam a seus discípulos “outro Consolador” (Jo 14.16,26; 15.26; 16.7). O Consolador ou Paráclito (ou Paracleto, da palavra grega parakletos, que significa o que dá auxilio), é um ajudador, conselheiro. fortalecedor, estimulador, aliado e advogado. Outro única que Jesus foi o primeiro Paráclito e está prometendo um substituto, que, após sua partida, continuará o ensino e o testemunho que Ele havia iniciado (Jo 16.6,7).

O ministério do Paráclito, por sua própria natureza, é um ministério pessoal e relacional, implicando a plena pessoalidade de quem o consuma. Embora o Velho Testamento tenha dito muito acerca da atividade do Espírito na Criação (por exemplo, Gn 1.2; Sl 33.6), na revelação (p. ex., Is 61.1-6; Mq 3.8), na capacitação para o serviço (p. ex., Êx 31.2-6; Jz 6.34; 15.14,15; Is 11.2), e na renovação interior (p. ex., Sl 51.10-12; Ez 36.25-27), ele não torna claro que o Espírito é uma Pessoa divina distinta. No Novo Testamento, contudo, fica claro que o Espírito é verdadeiramente uma Pessoa distinta do Pai, assim como é o Filho. isto é evidente não somente pela promessa de “outro Consolador”, mas também pelo fato de que o Espírito, entre outras coisas, fala (At 1.16; 8.29; 10.19; 11.12; 13.2; 28.25), ensina (Jo 14.26), testemunha (Jo 15.26), busca (1 Co 2.10,11), determina ( 1 Co 12.11), intercede (Rm 8.26,27), é alvo de mentira (At 5.3), e pode ser afligido (Ef 4.30). Somente de um ser pessoal podem ser ditas tais coisas.

A divindade do Espírito surge da declaração de que mentir ao Espírito é mentir a Deus (At 5.3,4), e da associação do Espírito com o Paia e o Filho nas bênçãos ( 2 Co 13.14; Ap 1.4-6) e na fórmula do batismo (Mt 28.19). O Espírito é chamado “os sete espíritos” em Apocalipse 1.4; 3.1; 4.5; 5.6, em parte, parece, porque sete é um número que significa a perfeição divina e, em parte, porque o Espírito ministra em sua plenitude.

Portanto, o Espírito é “Ele”, não “ele”, e deve ser obedecido, amado e adorado, juntamente com o Pai e o Filho.

Testemunhar a Jesus Cristo, glorificá-lo, mostrando a seus discípulos quem e o que Ele é (Jo 16.7-15), e fazê-los cônscios do que são nele (Rm 8.15-17; Gl 4.6) é o ministério central do Paráclito. O Espírito nos ilumina (Ef 1.17,18), regenera (Jo 3.5-8), guia-nos à santidade (Rm 8.14; Gl 5.16-18), transforma-nos (2 Co 3.18; Gl 5.22,23), dá-nos certeza ( (Rm 8.16), e dons para ministério ( 1 Co 12.4-11). Todo trabalho de Deus em nós, tocando nosso corações, nosso caráter e nossa conduta, é feito pelo Espírito, embora aspectos desse trabalho sejam, às vezes, atribuídos ao Pai e ao Filho, de quem o espírito é executivo.

O pleno ministério do Espírito começa na manhã do Pentecostes, logo depois da ascensão de Jesus (At 2.1-40, João Batista predisse que Jesus batizaria com Espírito Santo ( Mc 1.8; Jo 1.33), de acordo com a promessa do Velho Testamento de um derramamento do Espírito de Deus nos últimos dias (Jl 2.28-32; cf. jr 31.31-34), e Jesus havia repetido a promessa (At 1.4,5). A significação da manhã do Pentecostes foi duplo: ela marcou o início da era final da história do mundo antes do retorno de Cristo, e, comparada com a era do Velho Testamento, marcou uma formidável intensificação do ministério do Espírito e da experiência de viver para Deus.

Os discípulos de Jesus foram evidentemente crentes nascidos do Espírito antes do Pentecostes, de sorte que eu batismo no Espírito, que trouxe poder à sua vida e ministério (At 1.8), não foi o começo de sua experiência espiritual. Para todos, porém, que chegaram à fé desde a manhã do Pentecostes, começando com os convertidos naquele evento, o recebimento do Espírito na plena bênção da nova aliança tem sido um aspecto de sua conversão e novo nascimento (At 2.37; Rm 8.9. 1 Co 12.13). Todas as aptidões para o serviço que surgem subseqüentemente na vida de um cristão devem ser vistas como a seiva emanada desse batismo espiritual inicial, que une vitalmente o pecador ao Cristo ressurreto.

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Fonte: Packer, J.I., Teologia Concisa, pg. 135, Ed. Cultura Crista.

fonte: O Espírito Santo Ministra aos crentes

26/08/2010

Sabedoria Bíblica: Lar

 





Capítulo 13: Lar

Essa palavra "lar" sempre soa como poesia para mim. Ela ressoa como o repique dos sinos em um casamento, apenas soa mais suave e terno nas fibras mais íntimas do meu coração. Não importa se ela refere-se a uma cabana de sapé ou a um solar: lar é lar, mesmo que seja muito simples não há lugar na terra como ele. A trepadeira pode crescer em cachos róseos pelo telhado para sempre, deixando o musgo florir no sapé. Os pardais chilreiam docemente, e as andorinhas gorjeiam à volta do lugar escolhido que é a minha alegria e o meu descanso. Todo pássaro ama seu ninho; a coruja acha a velha ruína o lugar mais sereno sob a lua, e a raposa sente que sua cova na montanha é extraordinariamente aconchegante.

Quando o alazão do meu senhor sabe que está indo para casa, ele não precisa de guia e pensa: é melhor ir a galope; e eu penso o mesmo, pois o caminho de casa para mim é o melhor pedaço de estrada do país. Eu gosto mais de ver a fumaça da chaminé da minha casa, que o fogo no forno dos outros; há algo muito lindo no caminho que serpenteia entre as árvores. As batatas frias na mesa da minha casa têm mais sabor que a carne assada na dos meus vizinhos, e o perfume da madressilva na minha porta é o mais doce que eu já senti. Quando você está fora, os amigos o recebem da melhor forma que podem, mas mesmo assim não é a nossa casa. Eles dizem: "Sinta-se em casa", porque todo mundo sabe que sentir-se em casa é sentir-se à vontade.


Leste e oeste
o lar é melhor.

Porque em casa você está em casa, o que mais você pode querer? Ninguém inveja você, seja qual for seu apetite; e você nunca se deita em uma cama úmida. Salvo em seu castelo, como um rei em seu palácio, o homem se sente alguém e não sente medo de ser considerado orgulhoso por pensar assim. Todo galo canta em seu terreiro, é o cachorro sente-se um leão quando está em casa. A vassoura é a senhora do seu armário. Não há necessidade de cuidar de cada palavra, porque algum inimigo pode estar observando, nem manter o coração fechado a sete chaves; tão logo fechamos a porta de entrada abre-se o saguão da liberdade sem nada a espreitar-nos. A nossa querida e velha Surrey, tem uma vista magnífica do topo da montanha Leith, e não devemos desprezar a Hindhead e a capela Marthas e a Boxhill, mas eu poderia mostrar a vocês uma coisa que, a propósito, bate todas elas em beleza. Refiro-me à cabana de João Lavrador, em que a chaleira ferve na lateral do fogão, cantando como um anjo negro não caído, enquanto o gato fica deitado adormecido em frente ao fogo, a esposa se senta em sua cadeira remendando as meias, e as crianças ficam andando pela sala tão cheias de alegria como os cordeirinhos. É um fato curioso, talvez alguns de vocês duvidem disso, mas isso deve-se a sua natureza descrente – nossos pequenos são sempre uma verdadeira beleza, um pouco mais gordos do que os outros da sua idade e, mesmo assim, dão bem menos trabalho para tomar conta que os bebês dos outros. Porque, abençoada seja ela, minha esposa se cansaria na metade do tempo se sua vizinha tivesse pedido a ela para olhar uma criança estranha, mas seus filhos não parecem cansá-la de forma alguma. Creio que tudo isso vem do fato de terem nascido em casa. Na verdade, o mesmo acontece com tudo o mais, nossa terra é a mais bonita nos trinta quilômetros a nossa volta, porque nosso lar está nela, e meu jardim é um perfeito paraíso, por nenhuma razão especial além desta muito boa: ele pertence à velha casa do meu lar.

Eu não consigo compreender porque muitos trabalhadores gastam as noites em hospedarias, quando suas lareiras são bem melhores e mais baratas também. Nas hospedarias, eles se sentam, hora após hora, se embriagando e falando besteiras, esquecendo as pessoas queridas em casa quase mortas de fome e cansadas de esperar por eles. Seu dinheiro vai para a gaveta do estalajadeiro, quando deveria levar conforto à esposas e aos filhos. Quanto à cerveja que bebem é como o leite dos tolos, serve apenas para afogar sua inteligência. Tais camaradas deveriam ser chicoteados como cavalos, e os que os encorajam e vivem à custa deles mereciam sentir a ponta do chicote. Esses bares são a maldição deste país; ninguém de bem entra neles, e o mal que eles fazem nenhuma língua pode contar. As estalagens já eram bastante ruins, mas os bares são uma praga; eu gostaria que o homem que elaborou a lei para a abertura deles tivesse de manter todas as famílias que eles levaram à ruína. Os bares são os inimigos do lar e, portanto, quanto mais cedo suas licenças forem caçadas, melhor. Tudo o que prejudica o lar é uma maldição e deve ser eliminado, como os guardas-caças fazem com a enzima das florestas.

Os maridos devem tornar o lar feliz e sagrado. O pássaro que suja o próprio ninho é doente, e o homem que torna seu lar miserável é mau. Nossa casa deve ser uma pequena igreja com a santidade de Deus acima da porta, mas jamais deve ser uma prisão em que há um monte de regras e ordens, mas pouco amor e nenhum prazer. A vida de casado não é sempre doce, mas a graça no coração mantém afastada a maior parte das amarguras. A religiosidade e o amor edificam o homem, assim como o pássaro em uma reserva que canta entre espinhos e arbustos também faz com que os outros cantem. O marido deve ter prazer em agradar sua esposa, e a esposa, esmero em cuidar do seu marido. Quem é gentil consigo mesmo é gentil com sua esposa. Receio que alguns homens vivam pela lei do individualismo, e quando esse é o caso, a felicidade do lar é uma farsa. Quando os maridos e as esposas são muito unidos, como sua carga se torna leve! Nem toda dupla é um par, o que é uma pena. Em um lar verdadeiro toda a disputa é para ver quem pode fazer o melhor para tornar a família feliz. Um lar deve ser um santuário, não uma Babilônia. O marido deve ser o "vínculo do lar", unindo como uma pedra angular, e não esmagando tudo como uma pedra de tropeço. Maridos grosseiros e dominadores não devem ter a pretensão de ser cristãos, pois agem totalmente contra os ensinamentos de Cristo. Por outro lado, um lar deve ser bem comandado ou se torna uma confusão e um escândalo para a igreja. Se o pai larga as rédeas da casa, o treinador da família logo está no fosso. Uma mistura sábia de amor e firmeza possibilita um bom comando, mas nem a aspereza nem a amabilidade sozinhas mantêm um lar feliz.

Um lar não é um lar se as crianças que vivem nele não forem obedientes; é mais uma dor que um prazer estar nele. Feliz é quem consegue ser feliz com seus filhos, e felizes são as crianças que estão felizes com o pai que têm. Nem todos os pais são sábios. Alguns são como Eli e estragam seus filhos. Não se opor aos nossos filhos é o caminho para transformá-los em uma cruz em nossa vida. Os que nunca castigam os filhos não podem se admirar se seus filhos se transformarem em um castigo para eles. Salomão ensina: "Discipline seu filho, e este lhe dará paz; trará grande prazer à sua alma", Eu não estou certo de que hoje haja alguém mais sábio do que Salomão, apesar de alguns pensarem que são. Os potros novos devem ser freados ou viram em cavalos selvagens. Alguns pais são apenas irritação e fúria que inflamam à menor falta; isso é pior ainda e transforma o lar em um pequeno inferno, em vez de um paraíso. Sem vento o moinho fica preguiçoso, contudo, o excesso de vento danifica o moinho. Em geral, os homens que golpeiam com sua raiva perdem seu limite. Vai tudo bem quando Deus nos ajuda a segurar as rédeas firmemente, mas sem machucar a boca dos cavalos. Quando o lar é governado de acordo com a palavra de Deus, podemos convidar os anjos para passar a noite conosco, e eles não se sentirão fora de seu elemento.

As esposas deveriam sentir que o lar é o seu lugar e o seu reino, e que a felicidade dele depende, sobretudo, delas e se forem esposas más levarão os maridos para longe com suas línguas afiadas. Outro dia um homem disse para sua esposa: "Dobre seu chicote." Ele dizia para ela manter a língua quieta, é uma desgraça viver com esse tipo de chicote sempre açoitando-o. Dizem que quando Deus deu ao homem dez normas de discurso, a mulher fugiu com nove e, em alguns casos, receio que o dito seja verdade. Uma esposa, descuidada, negligente e bisbilhoteira é o bastante para deixar o marido louco; e se isso o levar ao bar, ela será a causa disso. É doloroso viver em um lugar em que a esposa, em vez de reverenciar o marido, está sempre brigando e falando mal dele. Deve ser bom quando essas mulheres ficam roucas, é uma pena que elas não tenham tantas bolhas na língua quanto os dentes que têm em suas mandíbulas. Deus nos livre a todos das esposas que são anjos nas ruas, santas na igreja e demônios em casa. Eu nunca experimentei essas ervas tão amargas, mas tenho piedade do fundo do coração dos que suportam essa dieta todos os dias.

Mostre-me um marido amoroso, uma esposa valorosa e crianças gentis, e nem uma parelha de cavalos das que estão sempre voando ao longo da estrada conseguiria, em um ano, levar-me onde eu pudesse ver uma cena mais agradável. O lar é a maior de todas as instituições. Falem sobre o Parlamento, mas me forneçam um parlatório pequeno e sossegado. Se quiserem vangloriem-se sobre o voto e sobre a Grande Reforma Bill (Reforma que aconteceu na Inglaterra em 1832, sob o comando de Lorde John Russell), mas eu prefiro um casamento em um pequeno jardim e ensinar hinos às crianças. O direito de voto é uma coisa muito boa, mas antes disso, eu gostaria muito de conseguir uma hipoteca para minha cabana se pudesse ter dinheiro para comprá-la. Não sei muito sobre a Carta Magna, mas se ela representa um lar sossegado para todo mundo, três vivas para ela. Eu gostaria que nossos governadores não destruíssem os lares de tantos homens pobres por causa de uma lei abominável e desalmada. Ela parece servir mais aos cães raivosos que aos ingleses. Outro dia, um motorista de carro de Hampshire contou-me que sua esposa e seus filhos estavam no asilo para pobres do governo e que seu lar estava arruinado por causa do funcionamento cruel da assistência social. Ele tinha oito pequenos e a esposa para manter com uma ninharia por semana, além disso, com aluguel para pagar; por isso, ele não conseguia manter o corpo e a alma juntos. Contudo, se a igreja tivesse concedido a ele uma bagatela, um ou dois pães e um par de moedas por semana, ele poderia ter se virado, mas não, nem um centavo saiu da igreja. Eles morreriam de fome se não fossem todos para o asilo. Assim, com lágrimas amargas e muita dor no coração, o pobre infeliz teve de vender os poucos móveis que tinham e, agora, é um homem sem lar. Além disso, ele é um trabalhador ótimo e diligente e serviu seu patrão por quase vinte anos.

Casos como esse são comuns, mas não deveriam ser. Por que os realmente pobres não merecem ter uma pequena ajuda? Por que eles são forçados a ir para o asilo? O lar é o pilar do Império Britânico e não deveria ser reduzido a cacos por causa de leis não cristãs. Eu gostaria de ser um orador e poder falar com os políticos. Não me preocuparia em criticar os membros do partido pró reforma ou os partidários de James, os conservadores, eu ficaria em pé como um leão defendendo os homens sem lar e diria para os lordes e para a burguesia, que o lar dos pobres é tão importante para eles como são seus grandes palácios e, muitas vezes, são ainda mais queridos.

Se eu não tivesse lar, o mundo seria uma grande prisão para mim. A Inglaterra é meu país, Surrey, minha região, mas não lhes direi qual é minha aldeia ou passarão a caçar o João Lavrador. Muitos amigos meus emigraram e estão desbravando solo fresco na Austrália e nos Estados Unidos. Embora a pedra deles tenha rolado, espero que eles consigam criar musgo, pois quando estivam aqui eram como a galinha chocadeira que não consegue grãos. Realmente, esses tempos difíceis fazem o homem pensar em suas asas, mas eu estou preso pela perna ao meu lar e, pelo favor de Deus, espero viver e morrer no meio do meu povo. Eles podem fazer coisas melhores na França e na Alemanha, mas, afinal, a velha Inglaterra é tudo para mim.

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NOTA

Reproduzido pelo Projeto Spurgeon com permissão da Shedd Publicações

Sabedoria Bíblica; Conselhos simples para pessoas simples, de C.H. Spurgeon Copyright © Shedd Publicações 1a Edição - Dezembro de 2006 Tradução: Neusa Faraco Skliutas (Todos os direitos reservados por Shedd Publicações, São Paulo, Brasil)

PROIBIDO a REPRODUÇÃO DESSA POSTAGEM E DE SEU CONTEÚDO SEM CITAR ESSA LICENÇA E OS LINKS DA SHEDD PUBLICAÇÕES E DO PROJETO SPURGEON, NA ÍNTEGRA , AO FINAL DA REPRODUÇÃO

FONTE: Sabedoria Bíblica: Lar | Projeto Spurgeon

24/08/2010

Uma Outra Chance para a Igreja

 

Cada um desses lugares onde me encontrei com Deus no passado ( a Metodista Unida, a Capela do Calvário, a Vinha, igrejas emergentes e o lar atual na Igreja Anglicana)… tornaram-se a sementeira para uma nova forma de abordar as práticas espirituais da igreja. Eu estou buscando trazer o melhor de todos elas (Palavra, Espírito, liturgia (com calendário e ofícios), e disciplinas espirituais, para suportar sobre este novo trabalho.

Neste ponto da minha vida, eu basicamente tenho memórias positivas e apreço por tudo que cada tradição e cada grupo me deu. A mensagem aqui não é que tudo e todos no meu passado estavam errados, e que agora eu encontrei a igreja certa: a Igreja Anglicana. Eu conheço melhor.

A mensagem real é que encontrar uma forma de repraticar a fé de qualquer denominação diz respeito principalmente a cada um de nós. O foco aqui é a nossa capacidade de lidar com as práticas da igreja com o propósito de nossa transformação espiritual em primeiro lugar, com o ser embaixadores de Cristo para o bem dos outros um segundo próximo.

Eu sou uma pessoa melhor hoje por causa de todas as pessoas e os acontecimentos de várias épocas da minha a vida. Quando olho para trás, todos os prós e os contras da minha vida foram simplesmente oportunidades para aprender a andar com Deus como um líder para o bem dos outros. Eu bati muito nisso. Eu só conto a história para dar o contexto do qual a minha necessidade de repraticar a igreja vem à tona. Você precisa saber os meus antecedentes e influências, para que possamos fazer um bom trabalho juntos neste livro. Enquanto sou sincero em escrever, você precisa estar alerta para qualquer parcialidade cega que eu involuntariamente sustente. Como Rob Bell gosta de dizer, “Deus tem falado, tudo o resto é comentário, certo?”

Durante o período que eu não freqüentava regularmente a igreja, percebi que um ingrediente importante na minha busca de uma fé repraticada não vem de coisas externas a mim, como eras da minha vida, segmentos da igreja ou denominação, mas as coisas internas a mim – fatias do meu coração, partes da minha alma. De alguma forma, porém, durante a minha “noite escura da igreja”, percebi que Eu simplesmente não podia ficar longe da igreja. Ficar longe, eu percebi, não tinha poder construtivo. O que eu precisava era uma maneira positiva em retomar as práticas espirituais da igreja.

Vamos explorar como podemos encontrar a comum e, muitas vezes rejeitado elementos da vida da Igreja que pode se tornar o ouro nas mãos daqueles que procuram repraticar sua fé.

-Adaptado de “Prefácio: De churched para Dechurched para Rechurched”

Autor: Todd Hunter, Bispo Missionário da Missão Anglicana

Traduzido por http://danieldliver.blogspot.com/

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Giving Church Another Chance – Finding New Meaning in Spiritual Practices

“A maioria daqueles que criticam a igreja de hoje não têm nenhuma idéia o que ela é. Todd Hunter pode ajudá-lo a descobrir, já que ele a toma na sua própria peregrinação de descoberta – no interior. A igreja é uma corrente única da vida espiritual – vida do alto – fluindo através de um breve período da história humana e em um eterno “além”. Jesus Cristo é o único responsável por ela, e nós somos os que hoje precisa de uma segunda chance. Se você escutar atentamente o Hunter, você pode começar a encontrar a Igreja – talvez sem o benefício do edifício, mas lá também. Se o fizer, seu coração vai cantar com alegria. ”
-Dallas Willard, autor de A Conspiração Divina

“Viagens espirituais são coisas interessantes, e Todd é um dos mais interessantes – do líder das igrejas Vineyard, para a casa de pastor da igreja, a chefe de Alpha E.U.A., e agora um bispo anglicano. Conheço Todd por muitos destas incorporações e nós nem sempre concordamos, mas eu tenho sido sempre impressionado com a sua paixão por Deus e o coração dos outros. Neste livro, você vai encontrar as duas coisas – e meu palpite é que você será desafiado a pensar mais profundamente sobre a sua próprio caminhada espiritual. Todd lembra que a igreja não é lugar para ir, simplesmente uma outra reunião, mas o caminho que Deus escolheu tornar-se conhecido no nosso mundo. ”
-Ed Stetzer, presidente da LifeWay Research

“O que você está segurando deve levar uma advertência de saúde do governo: a leitura deste livro é bom para sua alma. Mas tome cuidado: ele pode levá-lo a se apaixonar pela igreja de novo, e o romance de repraticar a sua fé pode ser formador de hábito “.
-Leonard Sweet, autor de So Beautiful: Divine Design for Life and the Church

fonte:  Uma Outra Chance para a Igreja

23/08/2010

Sobre os Desigrejados

 

Para mim resta pouca dúvida de que a igreja institucional e organizada está hoje no centro de acirradas discussões em praticamente todos os quartéis da cristandade, e mesmo fora dela. O surgimento de milhares de denominações evangélicas, o poderio apostólico de igrejas neopentecostais, a institucionalização e secularização das denominações históricas, a profissionalização do ministério pastoral, a busca de diplomas teológicos reconhecidos pelo estado, a variedade infindável de métodos de crescimento de igrejas, de sucesso pastoral, os escândalos ocorridos nas igrejas, a falta de crescimento das igrejas tradicionais, o fracasso das igrejas emergentes – tudo isto tem levado muitos a se desencantarem com a igreja institucional e organizada.

Alguns simplesmente abandonaram a igreja e a fé. Mas, outros, querem abandonar apenas a igreja e manter a fé. Querem ser cristãos, mas sem a igreja. Muitos destes estão apenas decepcionados com a igreja institucional e tentam continuar a ser cristãos sem pertencer ou frequentar nenhuma. Todavia, existem aqueles que, além de não mais frequentarem a igreja, tomaram esta bandeira e passaram a defender abertamente o fracasso total da igreja organizada, a necessidade de um cristianismo sem igreja e a necessidade de sairmos da igreja para podermos encontrar Deus. Estas idéias vêm sendo veiculadas através de livros, palestras e da mídia. Viraram um movimento que cresce a cada dia. São os desigrejados.

Muitos livros recentes têm defendido a desigrejação do cristianismo (*). Em linhas gerais, os desigrejados defendem os seguintes pontos.

1) Cristo não deixou qualquer forma de igreja organizada e institucional.

2) Já nos primeiros séculos os cristãos se afastaram dos ensinos de Jesus, organizando-se como uma instituição, a Igreja, criando estruturas, inventando ofícios para substituir os carismas, elaborando hierarquias para proteger e defender a própria instituição, e de tal maneira se organizaram que acabaram deixando Deus de fora. Com a influência da filosofia grega na teologia e a oficialização do cristianismo por Constantino, a igreja corrompeu-se completamente.

3) Apesar da Reforma ter se levantado contra esta corrupção, os protestantes e evangélicos acabaram caindo nos mesmíssimos erros, ao criarem denominações organizadas, sistemas interligados de hierarquia e processos de manutenção do sistema, como a disciplina e a exclusão dos dissidentes, e ao elaborarem confissões de fé, catecismos e declarações de fé, que engessaram a mensagem de Jesus e impediram o livre pensamento teológico.

4) A igreja verdadeira não tem templos, cultos regulares aos domingos, tesouraria, hierarquia, ofícios, ofertas, dízimos, clero oficial, confissões de fé, rol de membros, propriedades, escolas, seminários.

5) De acordo com Jesus, onde estiverem dois ou três que crêem nele, ali está a igreja, pois Cristo está com eles, conforme prometeu em Mateus 18. Assim, se dois ou três amigos cristãos se encontrarem no Frans Café numa sexta a noite para falar sobre as lições espirituais do filme O Livro de Eli, por exemplo, ali é a igreja, não sendo necessário absolutamente mais nada do tipo ir à igreja no domingo ou pertencer a uma igreja organizada.

6) A igreja, como organização humana, tem falhado e caído em muitos erros, pecados e escândalos, e prestado um desserviço ao Evangelho. Precisamos sair dela para podermos encontrar a Deus.

Eu concordo com vários dos pontos defendidos pelos desigrejados. Infelizmente, eles estão certos quanto ao fato de que muitos evangélicos confundem a igreja organizada com a igreja de Cristo e têm lutado com unhas e dentes para defender sua denominação e sua igreja, mesmo quando estas não representam genuinamente os valores da Igreja de Cristo. Concordo também que a igreja de Cristo não precisa de templos construídos e nem de todo o aparato necessário para sua manutenção. Ela, na verdade, subsistiu de forma vigorosa nos quatro primeiros séculos se reunindo em casas, cavernas, vales, campos, e até cemitérios. Os templos cristãos só foram erigidos após a oficialização do Cristianismo por Constantino, no séc. IV.

Os desigrejados estão certos ao criticar os sistemas de defesa criados para perpetuar as estruturas e a hierarquia das igrejas organizadas, esquecendo-se das pessoas e dando prioridade à organização. Concordo com eles que não podemos identificar a igreja com cultos organizados, programações sem fim durante a semana, cargos e funções como superintendente de Escola Dominical, organizações internas como uniões de moços, adolescentes, senhoras e homens, e métodos como células, encontros de casais e de jovens, e por ai vai. E também estou de acordo com a constatação de que a igreja institucional tem cometido muitos erros no decorrer de sua longa história.

Dito isto, pergunto se ainda assim está correto abandonarmos a igreja institucional e seguirmos um cristianismo em vôo solo. Pergunto ainda se os desigrejados não estão jogando fora o bebê junto com a água suja da banheira. Ao final, parece que a revolta deles não é somente contra a institucionalização da igreja, mas contra qualquer coisa que imponha limites ou restrições à sua maneira de pensar e de agir. Fico com a impressão que eles querem se livrar da igreja para poderem ser cristãos do jeito que entendem, acreditarem no que quiserem – sendo livres pensadores sem conclusões ou convicções definidas – fazerem o que quiserem, para poderem experimentar de tudo na vida sem receio de penalizações e correções. Esse tipo de atitude anti-instituição, antidisciplina, anti-regras, anti-autoridade, antilimites de todo tipo se encaixa perfeitamente na mentalidade secular e revolucionária de nosso tempo, que entra nas igrejas travestida de cristianismo.

É verdade que Jesus não deixou uma igreja institucionalizada aqui neste mundo. Todavia, ele disse algumas coisas sobre a igreja que levaram seus discípulos a se organizarem em comunidades ainda no período apostólico e muito antes de Constantino.

1) Jesus disse aos discípulos que sua igreja seria edificada sobre a declaração de Pedro, que ele era o Cristo, o Filho do Deus vivo (Mt 16.15-19). A igreja foi fundada sobre esta pedra, que é a verdade sobre a pessoa de Jesus (cf. 1Pd 2.4-8). O que se desviar desta verdade – a divindade e exclusividade da pessoa de Cristo – não é igreja cristã. Não admira que os apóstolos estivessem prontos a rejeitar os livre-pensadores de sua época, que queriam dar uma outra interpretação à pessoa e obra de Cristo diferente daquela que eles receberam do próprio Cristo. As igrejas foram instruídas pelos apóstolos a rejeitar os livre-pensadores como os gnósticos e judaizantes, e libertinos desobedientes, como os seguidores de Balaão e os nicolaítas (cf. 2Jo 10; Rm 16.17; 1Co 5.11; 2Ts 3.6; 3.14; Tt 3.10; Jd 4; Ap 2.14; 2.6,15). Fica praticamente impossível nos mantermos sobre a rocha, Cristo, e sobre a tradição dos apóstolos registrada nas Escrituras, sem sermos igreja, onde somos ensinados, corrigidos, admoestados, advertidos, confirmados, e onde os que se desviam da verdade apostólica são rejeitados.

2) A declaração de Jesus acima, que a sua igreja se ergue sobre a confissão acerca de sua Pessoa, nos mostra a ligação estreita, orgânica e indissolúvel entre ele e sua igreja. Em outro lugar, ele ilustrou esta relação com a figura da videira e seus galhos (João 15). Esta união foi muito bem compreendida pelos seus discípulos, que a compararam à relação entre a cabeça e o corpo (Ef 1.22-23), a relação marido e mulher (Ef 5.22-33) e entre o edifício e a pedra sobre o qual ele se assenta (1Pd 2.4-8). Os desigrejados querem Cristo, mas não querem sua igreja. Querem o noivo, mas rejeitam sua noiva. Mas, aquilo que Deus ajuntou, não o separe o homem. Não podemos ter um sem o outro.

3) Jesus instituiu também o que chamamos de processo disciplinar, quando ensinou aos seus discípulos de que maneira deveriam proceder no caso de um irmão que caiu em pecado (Mt 18.15-20). Após repetidas advertências em particular, o irmão faltoso, porém endurecido, deveria ser excluído da “igreja” – pois é, Jesus usou o termo – e não deveria mais ser tratado como parte dela (Mt 18.17). Os apóstolos entenderam isto muito bem, pois encontramos em suas cartas dezenas de advertências às igrejas que eles organizaram para que se afastassem e excluíssem os que não quisessem se arrepender dos seus pecados e que não andassem de acordo com a verdade apostólica. Um bom exemplo disto é a exclusão do “irmão” imoral da igreja de Corinto (1Co 5). Não entendo como isto pode ser feito numa fraternidade informal e livre que se reúne para bebericar café nas sextas à noite e discutir assuntos culturais, onde não existe a consciência de pertencemos a um corpo que se guia conforme as regras estabelecidas por Cristo.

4) Jesus determinou que seus seguidores fizessem discípulos em todo o mundo, e que os batizassem e ensinassem a eles tudo o que ele havia mandado (Mt 28.19-20). Os discípulos entenderam isto muito bem. Eles organizaram os convertidos em igrejas, os quais eram batizados e instruídos no ensino apostólico. Eles estabeleceram líderes espirituais sobre estas igrejas, que eram responsáveis por instruir os convertidos, advertir os faltosos e cuidar dos necessitados (At 6.1-6; At 14.23). Definiram claramente o perfil destes líderes e suas funções, que iam desde o governo espiritual das comunidades até a oração pelos enfermos (1Tm 31-13; Tt 1.5-9; Tg 5.14).

5) Não demorou também para que os cristãos apostólicos elaborassem as primeiras declarações ou confissões de fé que encontramos (cf. Rm 10.9; 1Jo 4.15; At 8.36-37; Fp 2.5-11; etc.), que serviam de base para a catequese e instrução dos novos convertidos, e para examinarem e rejeitarem os falsos mestres. Veja, por exemplo, João usando uma destas declarações para repelir livre-pensadores gnósticos das igrejas da Ásia (2Jo 7-10; 1Jo 4.1-3). Ainda no período apostólico já encontramos sinais de que as igrejas haviam se organizado e estruturado, tendo presbíteros, diáconos, mestres e guias, uma ordem de viúvas e ainda presbitérios (1Tm 3.1; 5.17,19; Tt 1.5; Fp 1.1; 1Tm 3.8,12; 1Tm 5.9; 1Tm 4.14). O exemplo mais antigo que temos desta organização é a reunião dos apóstolos e presbíteros em Jerusalém para tratar de um caso de doutrina – a inclusão dos gentios na igreja e as condições para que houvesse comunhão com os judeus convertidos (At 15.1-6). A decisão deste que ficou conhecido como o “concílio de Jerusalém” foi levada para ser obedecida nas demais igrejas (At 16.4), mostrando que havia desde cedo uma rede hierárquica entre as igrejas apostólicas, poucos anos depois de Pentecostes e muitos anos antes de Constantino.

6) Jesus também mandou que seus discípulos se reunissem regularmente para comer o pão e beber o vinho em memória dele (Lc 22.14-20). Os apóstolos seguiram a ordem, e reuniam-se regularmente para celebrar a Ceia (At 2.42; 20.7; 1Co 10.16). Todavia, dada à natureza da Ceia, cedo introduziram normas para a participação nela, como fica evidente no caso da igreja de Corinto (1Co 11.23-34). Não sei direito como os desigrejados celebram a Ceia, mas deve ser difícil fazer isto sem que estejamos na companhia de irmãos que partilham da mesma fé e que crêem a mesma coisa sobre o Senhor.

É curioso que a passagem predileta dos desigrejados – “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mt 18.20) – foi proferida por Jesus no contexto da igreja organizada. Estes dois ou três que ele menciona são os dois ou três que vão tentar ganhar o irmão faltoso e reconduzi-lo à comunhão da igreja (Mt 18.16). Ou seja, são os dois ou três que estão agindo para preservar a pureza da igreja como corpo, e não dois ou três que se separam dos demais e resolvem fazer sua própria igrejinha informal ou seguir carreira solo como cristãos.

O meu ponto é este: que muito antes do período pós-apostólico, da intrusão da filosofia grega na teologia da Igreja e do decreto de Constantino – os três marcos que segundo os desigrejados são responsáveis pela corrupção da igreja institucional – a igreja de Cristo já estava organizada, com seus ofícios, hierarquia, sistema disciplinar, funcionamento regular, credos e confissões. A ponto de Paulo se referir a ela como “coluna e baluarte da verdade” (1Tm 3.15) e o autor de Hebreus repreender os que deixavam de se congregar com os demais cristãos (Hb 10.25). O livro de Atos faz diversas menções das “igrejas”, referindo-se a elas como corpos definidos e organizados nas cidades (cf. At 15.41; 16.5; veja também Rm 16.4,16; 1Co 7.17; 11.16; 14.33; 16.1; etc. – a relação é muito grande).

No final, fico com a impressão que os desigrejados, na verdade, não são contra a igreja organizada meramente porque desejam uma forma mais pura de Cristianismo, mais próxima da forma original – pois esta forma original já nasceu organizada e estruturada, nos Evangelhos e no restante do Novo Testamento. Acho que eles querem mesmo é liberdade para serem cristãos do jeito deles, acreditar no que quiserem e viver do jeito que acham correto, sem ter que prestar contas a ninguém. Pertencer a uma igreja organizada, especialmente àquelas que historicamente são confessionais e que têm autoridades constituídas, conselhos e concílios, significa submeter nossas idéias e nossa maneira de viver ao crivo do Evangelho, conforme entendido pelo Cristianismo histórico. Para muitos, isto é pedir demais.

Eu não tenho ilusões quanto ao estado atual da igreja. Ela é imperfeita e continuará assim enquanto eu for membro dela. A teologia Reformada não deixa dúvidas quanto ao estado de imperfeição, corrupção, falibilidade e miséria em que a igreja militante se encontra no presente, enquanto aguarda a vinda do Senhor Jesus, ocasião em que se tornará igreja triunfante. Ao mesmo tempo, ensina que não podemos ser cristãos sem ela. Que apesar de tudo, precisamos uns dos outros, precisamos da pregação da Palavra, da disciplina e dos sacramentos, da comunhão de irmãos e dos cultos regulares.

Cristianismo sem igreja é uma outra religião, a religião individualista dos livre-pensadores, eternamente em dúvida, incapazes de levar cativos seus pensamentos à obediência de Cristo.

Autor: Augustus Nicodemus Lopes
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NOTA:
(*) Podemos mencionar entre eles: George Barna, Revolution (Revolução), 2005; William P. Young, The Shack: a novel (A Cabana: uma novela), 2007; Brian Sanders, Life After Church (Vida após a igreja), 2007; Jim Palmer, Divine Nobodies: shedding religion to find God (Joões-ninguém divinos: deixando a religião para encontrar a Deus), 2006; Martin Zener, How to Quit Church without Quitting God (Como deixar a Igreja sem deixar a Deus), 2002; Julia Duin, Quitting Church: why the faithful are fleeing and what to do about it (Deixando a Igreja: por que os fiéis estão saindo e o que fazer a respeito disto), 2008; Frank Viola, Pagan Christianity? Exploring the roots of our church practices (Cristianismo pagão? Explorando as raízes das nossas práticas na Igreja), 2007; Paulo Brabo, Bacia das Almas: Confissões de um ex-dependente de igreja (2009).

fonte: Os Desigrejados

22/08/2010

EZEQUIAS RELOADED

Por: Karl Heinz Kienitz

 

 

 

 

 

 

“Estude ... e leia, especialmente biografias” é uma recomendação dada a líderes por Stephen Lorenz, general dos Estados Unidos que deixa o serviço ativo da sua força aérea por estes dias. Na busca de conhecimento de liderança, o “enfoque biográfico” é interessante: enfatiza a prática. Ao cristão que o adota chama atenção a história de Ezequias – entre outras certamente. Ele esteve à frente do povo de Judá numa época conturbada, obtendo êxitos expressivos a despeito das grandes dificuldades que enfrentou. Como que para enfatizar o caso Ezequias, sua história é assunto relativamente extenso de três autores bíblicos1.
Ezequias assumiu o governo de um país em ruínas; as perspectivas do reino de Judá eram as piores possíveis. Em batalha desastrada, seu pai Acaz havia conduzido multidões à morte num só dia. Mulheres e crianças chegaram a ser deportadas. O templo estava fechado e “despachos” eram feitos por toda Jerusalém. Mas lemos sobre Ezequias: “Tinha vinte e cinco anos de idade quando começou a reinar, e vinte e nove anos reinou em Jerusalém... No Senhor Deus de Israel confiou, de maneira que depois dele não houve quem lhe fosse semelhante entre todos os reis de Judá, nem entre os que foram antes dele. Porque se chegou ao Senhor, não se apartou dele ... para onde quer que saía se conduzia com prudência...”
Como o jovem Ezequias pode “dar a volta por cima”? O texto bíblico apresenta dois fundamentos para a atuação de Ezequias: uma decisão pessoal genuína em resposta à chamada de Miqueias ao arrependimento, e um relacionamento de fé (confiança) com Deus. Mais tarde o rei Josias seria apresentado como o rei mais fervoroso, porém o que lemos sobre Ezequias não deixa dúvida sobre seu pragmatismo confiante, fruto de uma fé madura.
Alicerçado em sua experiência pessoal, e apesar de todas as mazelas econômicas e militares da nação, Ezequias elegeu como primeira prioridade uma reorientação espiritual e de valores do seu povo: “... no primeiro ano do seu reinado, no primeiro mês, abriu as portas da casa do Senhor”. Inicialmente o jovem rei convocou os líderes do povo a um recomeço; infundiu-lhes dedicação e entusiasmo; soube vencer a inércia de alguns; e alavancado no apoio dos líderes reformou sua nação. As chaves para o sucesso desse processo foram: o “treinamento” de líderes; a ação pastoral de Ezequias; a bênção de Deus; e a manutenção de uma vida espiritual equilibrada.
Sob Ezequias a vida espiritual em Judá distinguiu-se por uma espiritualidade autêntica. Durante todo seu governo homens como Isaías, Miqueias e Oseias chamaram ao arrependimento, anunciaram a esperança do Messias e exortaram o povo a viver nos padrões de Deus. Os Provérbios transcritos pelos homens de Ezequias (Pv 25-29) documentam a qualidade do ambiente espiritual e social em Judá. Eis dois exemplos: “Se o seu inimigo estiver com fome, dê comida a ele; se estiver com sede, dê água”; “Um país sem a orientação de Deus é um país sem ordem. Quem guarda a lei de Deus é feliz”.
O ambiente em Judá refletia a qualidade da vida espiritual e o conhecimento do rei. Ezequias aprendeu que Deus cumpre o que promete, que tudo coopera para o bem de quem ele ama e que seu perdão é definitivo. Ezequias o expressou da seguinte forma: “Que direi? Como me prometeu, assim o fez... Eis que foi para a minha paz que tive grande amargura, mas a ti agradou livrar a minha alma da cova da corrupção; porque lançaste para trás das tuas costas todos os meus pecados”.
Da atenção à primeira prioridade resultou estabilidade individual e coletiva, viabilizando significativas realizações. Ezequias fortificou cidades, reaparelhou o exército e fortaleceu a segurança derrotando os filisteus. Em Jerusalém mandou construir um aqueduto através de rocha maciça, conhecido como o aqueduto de Ezequias e tido como uma das admiráveis obras de engenharia da Antiguidade.
Imprevistos desafiadores não tardaram. “Depois destas coisas e destes atos de fidelidade, veio Senaqueribe, rei da Assíria, e... acampou-se contra as cidades fortes, a fim de apoderar-se delas.” A reação de Ezequias mostra sua confiança incondicional em Deus e seu motivo para pedir intervenção divina é aprovado. Durante a crise, Ezequias continuou buscando conselho e valendo-se de trabalho em grupo. Assim como no início do seu reinado, o apoio dos líderes foi fundamental e o contato com a comunidade evitou a histeria coletiva quando tudo parecia perdido.
Um segundo imprevisto grave ocorreu mais ou menos à mesma época. “Naqueles dias Ezequias adoeceu de uma enfermidade mortal...” A doença levou Ezequias novamente a refugiar-se em Deus e levar a ele sua grande consternação. O texto bíblico não detalha os motivos da tristeza de Ezequias. Conjecturo que além da perplexidade pessoal com a morte iminente, havia pelo menos mais outra razão: o rei percebeu o grande risco da sua falta para a estabilidade da nação – não tinha então sucessor. Sua humildade e fé madura o levaram a reconhecer após sua convalescença: “Eu sei que foi para o meu próprio bem que sofri tanta aflição”.
Praticamente na sequência Ezequias é submetido a outra provação com propósito bem específico: “... quando vieram embaixadores de Babilônia, para se informarem do milagre da sua cura, Deus deixou-o agir sozinho, sem interferir, para que se revelasse inteiramente o seu caráter”. Durante a visita dos embaixadores, Ezequias agiu com um misto de credulidade, precipitação e orgulho, mas reconheceu seu erro ao ser interpelado por Isaías. Infelizmente o dano já estava feito e a resposta dada pelo rei a Isaías sugere que saúde e conforto fizeram Ezequias perder a visão além do horizonte da própria vida, algo que no momento da sua enfermidade parecia ser diferente. Essa negligência culminou em uma sucessão desastrosa. A diretriz colocada por Ezequias, “... o pai aos filhos faz notória a tua verdade”, não foi implementada com sucesso na educação do seu filho e sucessor Manassés. Judá passaria por momentos tenebrosos nas mãos de Manassés que, tão somente pela graça de Deus, acabaria se voltando à fé de seu pai após muita dor. Assim a parte final da história de Ezequias fornece impulsos importantes para refletir sobre um assunto atualíssimo: liderança, sucessão e continuidade institucional.
Eis um sumário de algumas lições de liderança que podem ser aprendidas do caso Ezequias:
a) Uma decisão pessoal genuína e um relacionamento de confiança com Deus são bases sólidas para uma liderança transformadora.
b) A chave para um grupo são seus líderes, mas eles precisam ser preparados e estimulados.
c) Duma vida espiritual equilibrada resultam estabilidade individual e coletiva.
d) Credulidade, precipitação e orgulho são perigos que rondam o líder, até mesmo o líder experiente.
e) Sucessão não se resolve sozinha e muito menos “do dia para a noite”. Falhas no processo sucessório comprometem a continuidade institucional e destroem conquistas anteriores.
f) A graça de Deus nos sustenta: “... da tua parte, Senhor nosso Deus, respondias às suas orações, e estavas sempre a perdoar-lhes as suas maldades, ainda que sejas um Deus castigador de tudo o que for pecado” (Sl 99.8).
Notas
1. Este texto se refere à história do rei Ezequias de Judá como anotada em 2 Reis 18-20, 2 Crônicas 29-32, Isaías 36-39 e Jeremias 26.17-19. Citações bíblicas seguem versões de Almeida, Bíblia na Linguagem de Hoje ou O Livro.
• Karl Heinz Kienitz recebeu o doutorado em Engenharia Elétrica pela Escola Politécnica Federal de Zurique, Suíça. É professor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica em São José dos Campos, e tem atuado como docente voluntário no treinamento de líderes pelo Haggai Institute em Maui e Cingapura. Karl mantém uma página Internet sobre fé e ciência no endereço www.freewebs.com/kienitz.

Fonte: Editora Ultimato - formação e informação

21/08/2010

Que avivamento é esse?

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Teologia Narrativa, Teologia Quântica, Ortodoxia Generosa… É extensa a lista de ensinos estranhos que tem invadido a Igreja brasileira nos últimos anos e pode transformar o crescimento evangélico em uma estatística vazia.

“Peça! Qualquer coisa que você quiser. Por exemplo, a sua casa própria. Mas não de qualquer jeito. Antes, pense como você a quer. Imagine-a como um sobrado no estilo casarão, pintada de branco, com janelas de madeira e um lindo jardim com rosas, margaridas e uma árvore frondosa, sob a qual é possível descansar deitado no verde gramado.”

O pensamento pode não ter durado mais do que os 15 segundos que você levou para chegar até aqui. Mas certamente terá efeito duradouro. E quem garante isso não são os gurus do pensamento positivo. Na verdade, o que você acabou de ler acima é uma pregação que já pode ser ouvida nos púlpitos de muitas igrejas evangélicas brasileiras. Cada vez mais, ensinos e teorias tão diversificados quanto contrários à chamada ortodoxia – a teologia mais conservadora – mudam a cara do cristianismo brasileiro. Como a “visualização”, em que a pessoa projeta em sua mente aquilo que quer, essas doutrinas entram com extrema sutileza para satisfazer necessidades temporais. Em geral, estão intimamente ligadas a teorias contemporâneas, modernas e pós-modernas. O nome que recebem dentro das faculdades teológicas e templos, espelha bem a mistura: Teologia Narrativa, Teísmo Aberto, Teologia da Esperança, Ortodoxia Generosa, Teologia Quântica, Evangelho da Auto-ajuda. Enquanto seus defensores exaltam suas virtudes, afirmando tratar-se de uma renovação na Igreja, diversos especialistas alertam: realmente a religião, depois desses ensinos, não será mais a mesma. Mas isso, porque está se distanciando do cristianismo bíblico e rumando para a heresia.

Nessa caminhada, um dos casos mais emblemáticos é o do pensamento positivo. A fórmula simples – “pense, acredite, receba” -, apresentada no livro O Segredo pela australiana Rhonda Byrne, já conseguiu convencer multidões mundo afora de que é possível conseguir a cura de doenças, a realização de grandes paixões e adquirir jóias e fortuna como num passe de mágica. “No momento em que você deseja alguma coisa, e acredita, e sabe que já a tem no invisível, o Universo inteiro se move para deixá-la visível”, defende a própria Rhonda, que alega ter redescoberto essa “verdade” milenar junto a sábios, filósofos, cientistas e gente de sucesso. A febre causada pelo tal segredo é tamanha que mais de 2 milhões de cópias em DVD e outros 13 milhões de livros foram vendidos no mundo todo.

Rhonda transformou-se no exemplo máximo da fórmula, sendo apontada como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time e amealhando uma fortuna estimada em US$ 50 milhões. Não é um caso isolado. Com roupagem científica e nome pomposo, a “lei da atração” hoje é divulgada por nomes como Esther Hicks, Michael Losier, Deepak Chopra em livros e filmes com nomes sugestivos do tipo Quem Somos Nós?.

Tolice ou não, a questão é que, diante de tamanho sucesso, muitos cristãos se perguntam como algo assim não foi registrado nas páginas da Bíblia. E a surpresa maior vem ao encontrar teólogos que garantem que esse mistério divulgado por Rhonda Byrne e companhia não é tão antigo nem secreto. Pelo contrário, sempre esteve nas Escrituras. Só que agora ganhou nome: Teologia Quântica. “A visualização encontra paralelo na Bíblia quando Jesus manda pedirmos em seu nome e crermos que já o temos recebido. A grande diferença é que os proponentes do pensamento positivo afirmam que todos podem ter tudo que quiserem – felicidade, riqueza, saúde. Mas esquecem de algo essencial: se isso é da vontade de Deus”, explica o pastor Ed Gungor, em seu livro Muito Além do Segredo.

Mas talvez a diferença não seja tão grande como pareça. O recurso à tradição cristã é algo comum na auto-ajuda. Um dos “clássicos” do gênero, O Poder do Pensamento Positivo, de 1952, foi escrito por um pastor metodista, Norman Vincent Peale. No livro, Peale faz uma relação direta entre fé e prosperidade, com direito a outras tantas máximas da Bíblia como “se Deus é por nós, quem será contra nós?”, extraída da Carta aos Romanos. Já O Segredo é mais parcimonioso na citação das Escrituras, mas confunde-se com a Teologia Quântica quando tenta dar um verniz científico a suas proposições. Ambos são inspirados em teorias contemporâneas, como os estudos da Física Quântica. Segundo os cientistas, partículas subatômicas como os elétrons podem se apresentar tanto como ondas de energia como objetos muito pequenos. Depende do observador. Já seus movimentos são imprevisíveis: ele pode aparecer em um momento num lugar e no outro estar no lado oposto. Da mesma forma é o homem, que recebe de Deus o livre-arbítrio e a capacidade de mudar os projetos divinos pela oração.

No afã de justificar suas posições, há até quem cite uma das mais famosas ilustrações da Teoria do Caos, segundo a qual uma borboleta que bate as asas no Japão pode causar, numa sucessão de eventos, um tornado no Brasil. Esse seria o efeito de uma oração feita com fé, ainda que pequena como um grão de mostarda. “Infelizmente, esse tipo de coisa é um grande erro cada vez mais enraizado nas igrejas. Os princípios são os mesmos do pensamento positivo, só muda o fornecedor que, em vez de ser o Universo, passa a ser Deus”, analisa Moisés Olímpio Ferreira, professor do Seminário Batista Nacional e do Instituto Betel de Ensino Superior (Ibes).

Para muitas igrejas que já se adaptaram a preceitos da Teologia da Prosperidade e à confissão positiva – segundo os quais o fiel deve determinar ou “profetizar” sua benção –, esse tipo de ensino cai como uma luva. “Não dá para tratar como se fosse restrito a uma corrente doutrinária. Esse pensamento religioso espelha o mundo em que vivemos e, de maneira sutil, afeta denominações tradicionais, pentecostais e neopentecostais. Deus se tornou o cumpridor de nossos desejos e o púlpito um manual de auto-ajuda para ser feliz sem sofrimento”, observa Ferreira, antes de complementar: “Hoje, a preocupação da Igreja não deve ser tanto com a santidade, mas com a sanidade daquilo que está pregando e ensinando”.

Novas e velhas heresias

Em mais de 20 séculos de história, a doutrina cristã sempre conviveu com as heresias, aqueles ensinos contrários a outros cujas origens remontariam ao próprio Jesus e seus apóstolos. Nos dois primeiros séculos, os gnósticos também tomavam a filosofia emprestada para ensinar que a matéria é má e negar a encarnação de Cristo, provocando muitas divisões entre os crentes. O sabelianismo surgido no século 3 é outra doutrina que causou confusão durante muito tempo ao afirmar que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram apenas aspectos distintos de uma única pessoa. No século 4, foi a vez do arianismo dizer que Jesus era apenas uma criatura um pouco superior feita por Deus. Mais um tempo depois e o pelagianismo começou a propagar a tese de que o homem nasce neutro, sem justiça ou pecado, e que são seus esforços que determinarão para onde irá. A graça de Deus facilita a difícil tarefa da salvação.

Nunca, no entanto, houve tamanha profusão de ensinos heterodoxos de uma só vez, como na atualidade. Detalhe: a maioria divulgada de forma sutil, diluída em sensações e experiências. Velhas idéias como as gnósticas ressuscitaram devido à descoberta de textos antigos como O Evangelho de Judas e a romances pseudo-históricos como O Código Da Vinci. Somaram-se a outras como a do Teísmo Aberto, que ganhou nova roupagem. Apesar de ser um fenômeno com mais de três décadas, no Brasil alguns desses ensinos se tornaram mais populares depois do tsunami que devastou a Indonésia no final de 2004.

Na ocasião, blogs de autores cristãos na Internet passaram a fomentar o debate: como um Deus amoroso permite a morte violenta de tanta gente? Para explicar a diferença entre esse atributo e o mundo real, a resposta encontrada foi que não é que Deus não queira salvar as pessoas, mas não pode. Apesar de ser todo-poderoso, ele criou o ser humano com liberdade. Para preservar isso, voluntariamente limita seu conhecimento do futuro, o que o impede de saber se alguns eventos vão acontecer.

Em parte, ensinos desse tipo são uma reação ao determinismo e ao controle enfatizados ao extremo pelas grandes denominações protestantes. Surgido no final da década passada, o movimento conhecido como Igreja Emergente é talvez um dos mais representativos desse novo momento do cristianismo. Insatisfeitos com sua vida espiritual e cansados do controle, estrutura e tradição das denominações tradicionais, grupos passaram a se reunir em casas, restaurantes e cafés nos Estados Unidos buscando nessas comunidades novas formas de espiritualidade. Uma de suas principais peculiaridades é buscar a união em torno de ações e características apreciadas por todos nas diversas correntes, como pode ser visto em obras como Uma Ortodoxia Generosa, do pastor Brian McLaren.

“O que houve foi uma reação à direita cristã conservadora nos Estados Unidos. Porém, uma reação que vai contra a própria fé e não contra os abusos e erros cometidos. Como o Brasil tem tradição em assimilar rapidamente o que vem de fora, uma cultura da imitação, diversas lideranças têm incorporado às suas convicções o ideário da esquerda cristã dos EUA e de Europa”, explica o pastor e professor Paulo Romeiro, do Departamento de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Mackenzie, em São Paulo. São essas idéias que trazem a nova onda de liberalismo teológico. “Nem tudo é devido ao neopentecostalismo. O triunfalismo neopentecostal não consegue viver sem um Deus onipresente. Apresenta falhas de interpretação, mas não duvida da Bíblia”, completa ele.

Na Igreja brasileira, porém, não são apenas as novas teologias que ganham espaço. Os modismos, quase sempre carregados de ensinos estranhos, aparecem em profusão. Engana-se quem pensa em batalha espiritual ou no movimento G12 com suas variações da cura interior e a suspeitíssima regressão psicológica, como as últimas novidades teológicas por aqui. “A indústria do entretenimento é muito forte na Igreja. Algo bem típico é a invasão dos festejos juninos nesses últimos anos. Diversas igrejas já fazem o seu arraial de Jesus. A sociedade não comemora datas bíblicas, mas a Igreja comemora as datas da sociedade, inclusive as religiosas”, observa Romeiro.

A área musical é outra que enfrenta dificuldades com modismos. Se um bem ensaiado grupo de coreografia durante os momentos de adoração pode elevar a espiritualidade do público, sua repetição durante todo o culto causa distração e afasta a pessoa da mensagem. A invasão dos corinhos, que na maior parte das igrejas pentecostais e neopentecostais substituíram os hinos por canções com longas e pasteurizadas repetições, também é muito criticada. Sem falar no messianismo de algumas lideranças evangélicas, quase adoradas pelos fiéis, e na sempre problemática questão financeira. “Se houvesse algum modo de tirar o dinheiro da história, acredito que muitas igrejas simplesmente deixariam de existir”, diz Paulo Romeiro, acrescentando que falar sobre sofrimento, renúncia e mundanismo passou a incomodar os protestantes. “Sabemos reunir muita gente em eventos, mas não conseguimos reunir mais as pessoas ao redor da cruz. Costumo dizer que o problema do Brasil não é se curvar a Baal, mas a Mamon, o deus que simboliza as riquezas”.

Crescimento qualitativo ou quantitativo?

Nunca houve um crescimento tão expressivo dos evangélicos no Brasil como o que se observa no presente. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há pouco mais de 20 anos, quase 90% da população do país se dizia católica. Os protestantes eram inexpressivos. Na virada do século, o número de crentes já havia crescido consideravelmente e representava 16% dos brasileiros. Atualmente, segundo pesquisa do Instituto Datafolha, os evangélicos já chegam a 22% ou 40 milhões de pessoas. Desses, a grande maioria são pentecostais, com uma prática religiosa focada nos problemas do dia-a-dia e um forte proselitismo.

O número de evangélicos é ainda mais expressivo se consideradas apenas as periferias das grandes cidades, locais onde há mais pobreza e segregação racial. Nesses bolsões, 29% dos habitantes se declaram evangélicos, contra 55% que afirmam ser católicos. Se confirmados outros dados, dessa vez da fundação norte-americana Pew Forum, de que 45% dos pentecostais brasileiros se converteram a partir do catolicismo, a previsão é de que em menos de vinte anos, a maior parte do povo brasileiro seja evangélico. Por conta desses números, muita gente não duvida em afirmar que o Brasil passa por um grande avivamento.

Será? “Estão distorcendo e banalizando o significado de avivamento. Na história, os avivamentos sempre trouxeram mudanças para a sociedade, como diminuição da violência e da corrupção. Não vemos isso no Brasil. Aqui, a influência evangélica na sociedade ainda é muito pequena. Temos um crescimento numérico, mas hoje vejo que o mundo tem influenciado mais algumas igrejas do que elas, o mundo”, aponta o pastor e jornalista assembleiano Silas Daniel, autor do livro A Sedução das Novas Teologias (Cpad), no qual critica os novos ensinos que estão entrando nas igrejas.

Mesmo que ainda não tenham chegado ao conhecimento do grande público, casos de igrejas e lideranças que adotam os modismos e novas teologias começam a preocupar os especialistas ouvidos por ECLÉSIA. “Há muitas aberrações doutrinárias e comportamentais que estão ocorrendo no meio evangélico. A qualidade da vida espiritual do brasileiro, em geral, não é boa. E onde está o problema? Basicamente na falta de ensino mais consistente da Palavra. Lideranças mal preparadas levam a rebanhos sem direção correta. Somos fortes para evangelizar, mas fracos para formar discípulos”, acredita Daniel.

Há pouco tempo, quando se falava em heresia, era quase automático se pensar em denominações que não seguiam a ortodoxia evangélica. Mórmons e Testemunhas de Jeová eram taxados como “seitas”. Doutrinas como a mariolatria – adoração a Maria -, a reencarnação e datas marcadas para a volta de Cristo eram automaticamente combatidas como grandes desvios. Os tempos mudaram. Com uma Igreja fraca em termos doutrinários e poderosa em marketing, está cada vez mais complicado dizer de onde vem o erro. “Existem desvios em toda parte, mesmo em denominações mais tradicionais há segmentos inteiros contaminados. Arrisco dizer que quase todas as igrejas estão infiltradas com doutrinas estranhas”, adverte Paulo Romeiro.

Relativismo, pluralismo e hedonismo são formas de pensar da sociedade atual. Mas se o mundo realmente entrou na Igreja ao combater as verdades absolutas, impor o ecumenismo às custas da fé e incentivar a satisfação das necessidades pessoais, como a busca de enriquecimento sem sofrimentos, o que acontecerá com o cristianismo brasileiro? É difícil dizer, mas dificilmente acabará como acreditam os ateus. Porém, aquele levantado para salgar a Terra e iluminar o mundo também não será mais um grande movimento de massa. E, tomara, não se torne como em muitos países do mundo, que se dizem evangélicos, mas que precisam mesmo ser novamente evangelizados.

Quadro: Teologia Narrativa

Como ler e ainda interpretar a Bíblia são questões que dividem a humanidade há séculos. Além de ser uma obra literária com belas lições morais e um conjunto de histórias edificantes, ela também é normativa, ou seja, traz doutrinas imutáveis porque é a Palavra de Deus revelada? A questão pode parecer óbvia para muita gente, mas ultimamente vem sendo o motivo de acirrados debates. Em grande parte, por causa da polêmica Teologia Narrativa, que propõe que o livro sagrado não deve ser entendido como uma grande doutrina com sentido único, mas como uma narrativa devocional, que pode ser lida e interpretada sem maiores preocupações com regras hermenêuticas estabelecidas pelos mais conservadores.

Inspirada na filosofia desconstrutivista surgida na França dos anos 1960, a Teologia Narrativa defende que a Escritura não é um código de consulta de verdades morais e eternas, mas a narrativa dinâmica de Deus. Seus principais defensores, o batista Hans Frei e o católico William Baush, evitam em suas obras conceitos que normalmente são usados para se referir à Bíblia, como autoridade, inerrância, infalibilidade, revelação, objetiva, literal e absoluta. Todas essas qualificações seriam extra-bíblicas, segundo eles. Isso porque não há uma forma única de interpretar cada texto. O sentido é dado a cada leitor pelo Espírito Santo.

Quadro: Teísmo Aberto

O Teísmo Aberto ganhou força no Brasil depois do tsunami que destruiu a Indonésia no final de 2004. Com a mesma força com que a onda ceifou milhares de vidas, a indagação sobre como um Deus bom pode deixar que aconteçam coisas tão ruins assim deixou as salas de aula das faculdades teológicas e se disseminou em grupos de discussão e blogs na Internet. Apesar de seus postulantes dizerem que crêem na onipotência, na onipresença e na onisciência divinas, defendem que devido ao livre-arbítrio que concedeu ao homem, Deus limitaria esses atributos em nome do amor e da liberdade dados à sua criação.

Com isso, também não conheceria todo o futuro, pois este dependeria das escolhas dos homens. Justifica essa crença com relatos bíblicos que afirmam que Deus se arrepende. Na realidade, nada disso é novidade. Desde que Pelágio ensinou que o homem pode ser santo por suas próprias forças nos primórdios da fé cristã, há defensores dessas crenças. A diferença é que agora o discurso está envernizado com tons piedosos. Afinal, não é que Deus não queria intervir para salvar os homens do tsunami. Ele não podia.

Quadro: Teologia Quântica

Se no dia-a-dia ciência e religião são como água e óleo, que não se misturam, não dá para negar a influência da Física Quântica nas reflexões teológicas nos últimos anos. Ao defender que a vida é mais do que o mundo material visível e que existem realidades que não estão presas às leis da Física Clássica, a Física Quântica atrai cada vez mais o interesse de grupos religiosos como budistas, espíritas e, agora, protestantes. Ao estudar as propriedades do átomo, os cientistas descobriram que partículas subatômicas como os elétrons podem se apresentar tanto como ondas de energia como objetos muito pequenos. Depende do observador. Já seus movimentos são imprevisíveis: ele pode aparecer em um momento num lugar e no outro estar no lado oposto.

Influenciados por essas descobertas, os defensores da Teologia Quântica enfatiza bastante o livre-arbítrio humano. Por meio da fé e da oração, o homem pode influenciar Deus e fazê-lo mudar sua vontade. Como o pensamento positivo, a confissão positiva atrai bênçãos e vitórias, inclusive financeiras.

Quadro: Evangelho da Auto-ajuda

Para os evangelistas da auto-ajuda, a Bíblia é um aglomerado de histórias inspirativas e textos de auto-ajuda. Termos como pecado e arrependimento são normalmente evitados por seus pregadores que preferem enfatizar a prosperidade material e o decretar da benção.

Um de seus principais representantes é Joel Osteen, pastor da Lakewood Church, na cidade de Houston, no Texas, Estados Unidos. Seu estilo sóbrio e pregação motivacional, principalmente na televisão, cativaram os norte-americanos e á começam a fazer seus primeiros adeptos em outros países. O sucesso é tanto que, em 2006, Osteen foi eleito o cristão mais influente das Américas.

Quadro: Escritores em xeque

O que há em comum entre , Brennan Manning e Brian McLaren? Além de todos serem autores de alguns dos mais festejados best-sellers cristãos da atualidade, todos são acusados de terem se enveredado pelo liberalismo teológico e mesmo de defenderem questões, digamos, pouco ortodoxas. De todos, o mais criticado tem sido McLaren, nome ainda pouco conhecido do grande públio no Brasil. O que não impede o autor de Ortodoxia Generosa, de influenciar várias lideranças e ser apontado com o principal nome de uma nova geração de teólogos. Justamente por defender uma união de esforços das diversas linhas teológicas cristãs para que a religião possa ser “sal” e “luz” no mundo, apontando virtudes que considera importantes em cada uma, McLaren começa a ser combatido como alguém que tenta relativizar os relatos das Escrituras.

Apesar de serem grandes admiradores de McLaren e defenderem alguns pressupostos liberais, o problema com Yancey e Manning é outro. Yancey, autor de Maravilhosa Graça, O Jesus que Eu nunca Conheci e famoso por suas críticas ao cristianismo institucionalizado, tem sido criticado por apoiar os movimentos homossexuais. Manning enfrenta o mesmo problema. Elogiado por obras de impacto social como O Evangelho Maltrapilho e O Impostor que Vive em Mim, em que defende um estilo de vida simples como algo central para a fé cristã, chocou recentemente os norte-americanos mais conservadores ao afirmar que, na sua opinião, é possível conciliar a fé cristã e o homossexualismo. A resposta veio rápido: o escritor tem sido duramente criticado por falar em suas palestras da graça de Deus sem enfatizar a questão da mudança de vida.

Marcos Stefano

Jornalista da revista Eclésia

fonte: Que avivamento é esse?