11/04/2010

A autoridade da Bíblia na tradição protestante

 

por André Tadeu de Oliveira * – A Bíblia é fonte de fé e base para a elaboração doutrinária de todos os ramos do cristianismo. Estudiosos bíblicos de renome são encontrados no catolicismo-romano e na ortodoxia oriental. Porém, é no protestantismo que este livro atingiu seu maior grau de autoridade. O famoso lema “Sola Scriptura” (Somente as Escrituras), denota a supremacia bíblica sobre outros elementos importantes da vivência cristã no mundo evangélico. Assim, para o protestante, a Bíblia é a máxima autoridade religiosa. Todo o resto se encontra subordinado a ela.

Por esta razão, Lutero, Calvino, Bucer, Zuínglio e todos os demais reformadores desenvolveram uma sólida teologia bíblica. Não obstante, uma questão deve ser avaliada: seria a teologia bíblica desenvolvida pelos reformadores do século 16 semelhante ao pensamento predominante no contexto evangélico brasileiro, marcadamente influenciado pelo fundamentalismo teológico?

Segundo a ideia fundamentalista, a Bíblia seria inspirada de forma verbal, isto é, todas suas palavras foram ditadas diretamente pelo Espírito Santo, cabendo ao ser humano desempenhar o mero papel de copista, sem nenhuma participação no processo de criação do texto. Grupos extremistas consideram até mesmo os supostos pontos vocálicos do original em hebraico no Antigo Testamento como divinamente inspirados. De acordo com esta visão, tudo o que se encontra no texto seria literalmente inerrante. Como aplicação prática deste princípio, a Bíblia converteu-se em um manual de ciências naturais ou em um compêndio historiográfico. A já mais que centenária polêmica envolvendo Criação x Evolução demonstra de forma clara esta situação. Para o fundamentalista, o texto do livro de Gênesis, que relata de forma simbólica a criação do universo, deve ser lido de forma literal e histórica. Tudo teria sido criado em 6 dias de 24 horas, sendo que todas as formas de vida surgiram da forma exata como descritas em Gênesis.

Após este pequeno resumo a respeito da forma como a teologia fundamentalista conservadora interpreta os escritos bíblicos, devemos confrontá-la com a maneira como os reformadores lidaram com essa questão.

Martinho Lutero tinha a Bíblia em altíssima conta. Para o reformador, ela era verdadeiramente a palavra de Deus. Contudo, tal designação não foi utilizada como que se referisse a um manual de ditos inerrantes. Para ele, a Bíblia era a palavra de Deus pelo fato de proclamar Jesus Cristo como salvador da humanidade. “A Bíblia é uma manjedoura, na qual está contido Jesus. Se não o encontramos, só temos palha”, afirmou o reformador. Coerente com esta declaração absolutamente cristocêntrica, Lutero chegou ao ponto de julgar o conteúdo bíblico usando como critério a pessoa e a obra de Jesus. Em uma de suas obras, escreveu: “Este é o verdadeiro critério para julgar todos os livros: se a gente vê, se tratam de Cristo ou não, uma vez que toda a Escritura mostra Cristo. O que não ensina Cristo, isto também não é apostólico, ainda que Pedro ou Paulo o ensinassem. Por sua vez, o que prega Cristo, isto seria apostólico, ainda que Judas, Anás, Pilatos ou Herodes o fizessem”. Vemos que Lutero submete a própria Bíblia a Cristo. Essa consciência o levou a ter a liberdade de criticar, abertamente, alguns livros da Bíblia. A Epístola de Tiago, por exemplo, foi chamada de “epístola de palha”. Já o livro de Apocalipse era visto com reservas, sendo considerado bastante obscuro.

João Calvino, reformador francês e pai do presbiterianismo, também possuía uma compreensão a respeito da Bíblia bastante divergente da concepção fundamentalista. Seguindo os passos de Lutero, Calvino afirmava a condição da Bíblia como palavra de Deus escrita. Concordando com o reformador alemão, atribuía este título às Sagradas Escrituras devido à sua capacidade de aproximar o ser humano de Jesus. Gottfried Brakemeier, teólogo e pastor luterano brasileiro, avaliza esta idéia: “A concentração cristológica da Escritura encontra notável paralelo em Calvino. Jesus Cristo é o centro da Escritura. Esta é a palavra de Deus na medida que traz Cristo consigo. Tal concepção afasta a identificação direta da letra com o evangelho e impele a busca do evangelho por trás das palavras, bem como reconhece a contextualidade do texto bíblico. Para Calvino, o sentido de muitas passagens depende de seu contexto histórico. É Cristo que valida a Bíblia, não vice-versa, sendo o Espírito Santo o autêntico intérprete. O biblicismo que atribui à Bíblia inerrância verbal é posterior tanto a Lutero como a Calvino”.

Completamente contrário ao método literalista de leitura bíblica apregoado pela escola fundamentalista-conservadora, Calvino fazia uso da chamada acomodação. De acordo com este método, Deus acomodaria sua mensagem de uma forma compreensível para o ser humano incapaz de entender suas verdades de maneira completa: “Assim, tais formas de falar não expressam com muita clareza o que Deus é, visto que acomodam o conhecimento dele à nossa frágil capacidade”. Foi isso que Calvino escreveu nas Institutas. A respeito do método hermenêutico da acomodação usado pelo reformador de Genebra, e especificamente no tocante a sua relação com as ciências naturais, Karen Armstrong declarou: “ Calvino não via contradição entre a ciência e as Escrituras. Em sua opinião a Bíblia não fornece informações literais sobre geografia ou cosmologia, mas tenta exprimir uma verdade inefável em termos que os limitados seres humanos possam entender. A linguagem bíblica é infantil – uma simplificação deliberada de uma verdade complexa demais para ser articulada de outro modo”. Portanto, fica clara a enorme distância existente entre a forma como Calvino enxergava o texto bíblico e o literalismo que defende a tese de que todas as palavras são absolutamente inerrantes e divinas, devendo ser interpretadas literalmente. Uma leitura verdadeiramente calvinista das Escrituras não combina com fundamentalismo.

Outras significativas distâncias separam Calvino dos modernos fundamentalistas, muitos dos quais se consideram, de forma absolutamente equivocada, fiéis intérpretes do reformador. Para estes grupos conservadores, a veracidade da Bíblia como palavra de Deus deve ser provada de todas as formas possíveis. Comprovações supostamente científicas de fatos narrados na Bíblia são fundamentais. Para Calvino, este método é completamente ineficaz: “Devemos tentar conseguir nossa convicção em um lugar mais elevado do que as razões, avaliações e conjecturas humanas, isto é, no testemunho secreto do Espírito” (Institutas 1.7.4). Ou ainda: “Aqueles que desejam provar aos incrédulos que a Escritura é a palavra de Deus estão agindo tolamente, pois isto somente pode ser sabido mediante a fé” (Institutas 1.8.13).

Após claros apontamentos, fica claro o distanciamento de Calvino de uma interpretação legalista e literalista da Bíblia. Todavia, este afastamento chega a ser tão marcante a ponto de o autor das Institutas admitir erros e falhas no próprio texto. Comentando uma falha cometida pelo apóstolo Paulo em Romanos 3.4, citando de forma equivocada o texto do Salmo 51.4, afirmou: “Ao citar as Escrituras, os apóstolos frequentemente usavam uma linguagem mais livre do que o original, visto que eles se contentavam em aplicar a citação ao seu assunto e, portanto, eles não eram exageradamente cuidadosos no uso das palavras”.

Nessa breve exposição, duas coisas ficam claras: a participação ativa dos apóstolos na criação do texto, não como simples copistas guiados pelo Espírito; e a possibilidade de pequenas imprecisões no momento da redação textual. Esta percepção de Calvino é afirmada de forma mais direta em um trecho de seu comentário enfocando Hebreus 10.6: “Os apóstolos não eram escrupulosos demais na citação das palavras, ressalvando que não faziam mau uso das Escrituras, segundo suas conveniências. Nós devemos sempre olhar para o propósito com que as citações eram feitas… mas, no que diz respeito às palavras, como em outras coisas que não são relevantes ao propósito estabelecido, eles se permitiam alguma indulgência”.

Após argumentos tão contundentes, torna-se clara a enorme diferença existente entre a idéia de autoridade e inspiração bíblica cultivada pela tradição protestante original e a posterior teoria da inspiração verbal, fruto da ortodoxia do século XVII, defendida por teólogos fundamentalistas e até mesmo conservadores. Para os reformadores, a Bíblia era uma interminável fonte de paz e liberdade, levando a pessoa ao pleno conhecimento de Deus e de sua vontade para a vida cotidiana. Para a teologia fundamentalista, a Bíblia se converteu em um livro árido, repleto de regras moralistas e castradoras, sendo utilizada até mesmo como manual de ciências naturais, extrapolando e adulterando a função primordial do livro sagrado. Tornou-se, como bem afirmou o teólogo reformado suíço Emil Brunner, uma espécie de “papa de papel”.

Para que a Bíblia seja compreendida e utilizada de forma correta, cabe uma breve reflexão sobre o que escreveu um importante pastor e teólogo presbiteriano independente, o Rev. Epaminondas Melo do Amaral: “A fim de colocar em posição legitima seu princípio, terá o protestantismo de rejeitar todo o literalismo que ele tenha impregnado. Valerá para nós a Escritura, sem imposições da inspiração literal, sem o peso indiscriminado da aceitação em bloco, porém com as insuperáveis virtudes de sua mensagem espiritual”.

Jorge Bertolaso Stella e sua concepção da formação da Bíblia
Stella é uma daquelas personalidades cujo brilhantismo foi relegado ao esquecimento. Italiano de Abadia, província de Parma, chegou ao Brasil com três anos de idade. Junto com seus familiares, estabeleceu-se no interior de São Paulo. Convertido ao protestantismo, tornou-se ministro evangélico em 1919. Destacou-se como pastor por quase trinta anos na Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo.

Interessante é sua sólida formação intelectual. Teólogo formado, adquiriu um real interesse pela filologia, sendo fluente no grego e hebraico. Não obstante a importância destas duas línguas, sua grande contribuição à cultura brasileira reside no fato de ser o primeiro intelectual nacional a dominar o sânscrito, língua indiana milenar. Apaixonado pela cultura hindu, escreveu um dos melhores comentários existentes em português sobre o Bhagavad Gita, livro sagrado do hinduísmo, além de vários estudos a respeito da cultura e religião do povo indiano. Ao contrário da maioria dos evangélicos, não possuía uma relação apologética com crenças não cristãs , mas as considerava como expressões relevantes da religiosidade humana. Completamente favorável ao diálogo inter-religioso, deixou o seguinte pensamento: “ Não há, em determinado sentido, duas religiões no mundo. Há uma só religião. O que há é desenvolvimento da religião, evolução, transformação do sentimento religioso. A água é uma só… A luz é uma só… conforme o instrumento que ela atravessa, se decompõe em cores diferentes como no caso do arco-íris”.

Foi professor emérito da cadeira de história das religiões na Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente na capital paulista e membro de destaque do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

Feito este pequeno e indispensável resumo histórico, vamos nos ater em um breve texto de sua autoria a respeito do processo de formação da Bíblia. Para Stella, a Bíblia, mesmo sendo palavra de Deus, foi composta através de um longo processo cuja influência de textos de outras culturas e religiões foi determinante. Desta forma, leis contidas no Pentateuco, por exemplo, foram claramente inspiradas no babilônico Código de Hammurabi. Isto é, houve um intercâmbio entre a antiga cultura hebréia e a de seus vizinhos orientais. Esta constatação é inaceitável para grupos fundamentalistas, pois destrói a ideia de uma revelação pura e restrita ao antigo povo de Israel.

Assim, vamos ao texto, ele fala por si:

AS RAÍZES DA BÍBLIA
A Bíblia, livro humano, tem sido comparada com muitas coisas para mostrar sua utilidade. Eu assemelho-a uma árvore frondosa, cujas folhas são medicinais, cujas flores embelezam e cujos frutos nutrem e dão vida.

Nem sempre, ao observarmos uma árvore, pensamos na importância de suas raízes, que são como veias do corpo humano. É interessante observar, de passagem, que na língua basca, a mais antiga da humanidade ( 25.000 anos ), a palavra raiz significa veia. Raízes cortadas, árvores mortas.

A Bíblia tem suas raízes na Suméria, Caldéia,de onde recebeu idéias da criação, de Adão e da árvore da vida. Da Babilônia tiram-se, do Código de Hammurabi, 2.500 A.C, as leis abundantes que figuram nos livros de Gênesis, Êxodo e Levítico.

Do Egito,de onde, como se crê, origina-se Moisés, que não sendo autor do Pentateuco como muita gente pensa, é, no entanto, um vulto notável da humanidade, de lá vem, ao que parece, a idéia de Deus.

Da Pérsia passam para o Velho Testamento os seres celestes: anjos e arcanjos.
Dos Cananeus, outras abundantes idéias são transplantadas para a Bíblia. Demais idéias que constituem seiva preciosa, vêm de outros solos.

Como folhas são medicinais, as flores formosas e os frutos dão vida, a Bíblia é sombra de refrigério na aflição , embeleza a vida moral, o caráter, e nutre as almas nas suas aspirações.

À sombra dessa árvore tenho vivido a minha vida e na experiência de seus autores, colho o necessário para minha existência.

A Bíblia é a árvore da vida.

Conceitos religiosos – Jorge Bertolaso Stella, São Paulo, 1976

* André Tadeu de Oliveira, São Paulo-SP, é jornalista e estudante de Teologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie. A parte inicial deste texto foi publicada na revista Alvorada, órgão oficial da Secretaria de Forças Leigas da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. [imagem no início do post: Bíblia de Lutero (1534)]

A autoridade da Bíblia na tradição protestante

Nenhum comentário:

Postar um comentário

A boca fala do que está cheio o coração.