Por Paulo Brabo
Não piso numa livraria evangélica há talvez mais de quinze anos; hoje em dia a chance é ainda menor, agora que corro o risco de encontrar ali – imagine a minha cara – o meu próprio livro. Já basta o constrangimento de achar o livro da Bacia espreitando invariavelmente na estante de autojuda das livrarias seculares.
Agora que penso nisso, deve fazer uma boa década que não leio livros QUE FALEM SOBRE DEUS. Só consigo pensar em duas exceções, o Ortodoxia Generosa de Brian McLaren e o Salvos da Perfeição de Elienai Cabral Júnior – e, embora sejam livros excelentes (e falem sobre Deus apenas transversalmente, o que é quase perdoável), quase me arrependo de tê-los lido, porque lê-los é obrigar-se a recomendá-los, Eu não leria os meus próprios livros.e ninguém em hipótese alguma deveria recomendar ou ler livros QUE FALEM SOBRE DEUS, muito menos – e acima de todos – os meus.
Preciso confessar então, com todas as letras, que eu nunca jamais leria os meus próprios livros, nem por dinheiro, nem por amizade, nem – Deus me perdoe – por amor. Em termos estritos, se rolasse uma verdadeira integridade pessoal, eu não teria sequer como recomendar meus livros de modo indireto, como vivo fazendo, ou permitir que circulassem. A única parcela da minha obra da qual não me envergonho miseravelmente, e na qual encontro algum alento e interesse, é a ficção, e vivo prometendo a mim mesmo dar mais atenção a ela. Mas vida de ex-dependente é assim mesmo: sempre resvalando nos velhos hábitos, sempre remoendo as velhas obsessões. Todo combate tem uma grande parcela de narcisismo.
Para corrigir o anterior, preciso esclarecer que sim, leio livros que falam sobre Deus, com frequência e em grande número, mas tratam-se de autores que não acreditam em Deus ou no mínimo desconfiam muito – e estão, portanto, muito mais abalizados para discorrer sobre o assunto de forma relevante e não tendenciosa.
Deixo então, acima de tudo, esta recomendação e a severa advertência: se você, caro leitor, costuma ler livros QUE FALAM SOBRE DEUS, largue imediatamente mão dessa vida. Reconheceça essa sua dependência, segura na mão de Deus e vai. Ler livros QUE FALAM SOBRE DEUS é uma forma secreta de impenitência, um modo sistemático de contornar e evitar o verdadeiro e vital arrependimento. Acredite em mim quando digo que as pessoas que têm alguma intimidade com Deus não estão perdendo tempo escrevendo sobre ele; paralelamente, quem conhece minimamente os recatos e métodos de Deus absolutamente não perderia tempo procurando-o num livro – especialmente um livro que pretendesse falar com alguma autoridade sobre ele1.
Se continuo escrevendo, portanto, não é pela esperança de encontrar alguém que entenda ou alguém que se deixe convencer. Não é para cumprir uma missão ou obedecer um chamado. Não é por imaginar que o que escrevo possa ser relevante para alguém além de mim, ou por crer que seja a aguardada articulação de uma silenciosa ânsia coletiva.
Posso ser muito prepotente, quase ao infinito, mas não a esse ponto. Não sonho ser representativo de ninguém além de mim mesmo.
Já fui muito igrejeiro, mas hoje minha abstinência eclesiástica é para todos os efeitos completa.
Já me considerei evangélico, mas hoje não sei se seria acertado dizer que compartilho da fé cristã; mais certo seria usar uma tradução antiga e dizer que, depois de muitos anos tentando evitar olhá-lo nos olhos, vi-me seduzido pela persuasão de Jesus.
Leio a Bíblia muito pouco, a ritmo de conta-gotas, e minha versão favorita, por ser a mais desarmante e portanto a mais acurada, é a Bíblia dos gatos rsrs – e talvez seja necessário me conhecer pessoalmente para não ter dúvida de que estou falando sério.
Já fui explicado como ateu, como homossexual e como católico. Não me ocorreria contradizer nem por brincadeira essas definições, especialmente porque representam acusações nas bocas em que foram proferidas; minha obrigação é acumular brasas sobre suas cabeças, para que ardam no seu inferno por pressuporem a exclusão e por condenarem o que não deve ser condenado. Pecar não é afrontar a ortodoxia de alguns, é mostrar-se em falta para com a humanidade de todos.
Embora não tenha abandonado ainda a esperança de me tornar agente daquela transferência que Paul Tournier coloca no cerne do ministério de Jesus e à qual deu o nome de reversão da culpa – a tarefa de fazer com que os culpados sintam-se justificados e os justificados sintam-se culpados, – não me resta a expectativa de mudar a vida de ninguém, muito menos a minha. Certamente não através do que escrevo.
Não represento, caro leitor, o que você representa; represento o que represento, e temos de lidar com isso eu e você.
Existindo um Deus, ele não tem ilusões e sabe que não sou porta-voz de Deus (certamente não através do que escrevo). Não acalente você, meu amigo, essa ilusão.
NOTAS
- Naturalmente uma espécie semelhante de abstinência deve, mais cedo ou mais tarde, estender-se às próprias Escrituras. Eu mesmo li muito a Bíblia e passo a vida tentando esquecê-la, na esperança de ser capaz de colocá-la em prática (para mais sobre esse gracioso escândalo ver o último capítulo da versão impressa de Em seis passos – e eis-me de novo recomendando o irrecomendável). [↩]
A Bacia das Almas - Onde as idéias não descansam » Não sou seu porta-voz
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