17/02/2010

O CHAMADO PROFÉTICO NA POLÍTICA



Carlos Bezerra Jr.

O assunto me mobiliza. Talvez seja o discurso da minha vida. Mas pudera, não é? Encontrar o propósito de Deus em nosso cotidiano é a tarefa principal de cada ser humano. No dia-a-dia do médico, absorto no sofrimento dos seus pacientes, é fácil. No da assistente social e seus desvalidos, no do advogado e os injustiçados da vida, no do empresário que sustenta tantas famílias com seu negócio. Bom, mas meu cotidiano é a política, e daí? Pois me arrisco a dizer, e explicarei nas próximas linhas, que não existe vocação mais santa do que a vida pública. Pelo menos era o que dizia Calvino.

Primeiramente, gostaria de analisar a aversão que se formou na igreja quanto à política. A ascensão dos evangélicos no cenário nacional levou à inexorável eleição de representantes. Assim mesmo é que deve ser: todo e qualquer grupo social tem de se fazer representado no Congresso. Porém, desde aquela época, o pensamento corrente era o menos correto: temos de ocupar o parlamento para defender os interesses da Igreja, ou, pior, da nossa denominação! O fim disso, como se viu, foi devastador: não houve um grande escândalo nacional ou local que não tivesse um evangélico envolvido. Que desolação!

Entre todas as explicações plausíveis, passamos a pensar que a política é algo sujo mesmo, a serviço de satanás, que não havia jeito. Mas na verdade isso é um engano. Imagino que o povo de Deus no deserto também chegou a pensar que aquela aridez era infinita e que a Terra Prometida era uma ilusão qualquer, quando, de fato, ela existia. E qual seria a promessa para a política, então? Ora, para o que ela foi criada: promover a Justiça entre todos os cidadãos. Sim, é a arte da negociação, mas numa visão bem republicana, com a qual conduzimos a política hoje, é o cuidar bem da “res” pública, e na visão democrata, cuidar de forma que a vontade da maioria prevaleça.

E o que é a justiça? É dar a cada um o que é seu, dizia Tomás de Aquino. É justo que um estudante de classe média, que sempre estudou em bons colégios, dispute o vestibular da USP em pé de igualdade com rapaz pobre da periferia que estudou em escolas públicas depredadas? Sem dúvida, não é. No Brasil, a pobreza tem cor: é negra. Por isso, a política vem discutindo as cotas como forma de compensar a injustiça no acesso à universidade. Você pode discordar delas, mas, enfim, é pelo menos uma tentativa.

Quando passei a me debruçar sobre a questão do abuso e da violência sexual contra crianças, fui questionado sobre o porquê de me dedicar tão severamente a um tema. Havia várias respostas na ponta da língua. Chega a ser óbvio lutar para impedir tamanha barbaridade, mas não pensei duas vezes antes de responder: por causa da injustiça. Imagine construir uma sociedade sobre as marcas do abuso? “A injustiça em qualquer parte é uma ameaça à justiça em toda parte”, dizia Martin Luther King, que lutou pela igualdade racial nos Estados Unidos e que, coincidência, vai... era pastor batista. Somos, nós todos cristãos, os bem-aventurados dessa sociedade que têm sede e fome de justiça.

Mas ao elegermos tantos cristãos no passado, não estávamos preocupados com “o mundo”, com a justiça, com os que sofrem, estávamos, isso sim, atentos ao nosso próprio umbigo: como disse, queríamos pessoas que defendessem a igreja no Congresso, estavam muitos dos líderes ocupados com a formação de seus impérios. Pode uma fonte dar água limpa e suja ao mesmo tempo?, questionou o Mestre certa feita. Da mesma forma, enviar à política pessoas imbuídas do propósito de apenas proteger as denominações resultou na formação de um típico homem público evangélico: o despachante de igreja. Como ousamos questionar quem se elege para defender seus próprios interesses quando elegemos muitos para defender os nossos? Ora, quem protege a igreja de Cristo é o Dono dela!

Estamos, nós, cristãos, em qualquer lugar, prontos para servir. Há verdadeiramente uma maneira de atuar de forma profética na política e somos chamados com urgência para isso. A sociedade anseia por soluções onde o debate sobre o futuro é travado, ou seja, na política. Injustiça social, miséria, aquecimento global, desmatamento, meu Deus, são tantas as questões! Que adianta engordarmos espiritualmente dentro de nossas comunidades se os frutos que damos não chegam a quem tem fome? No passado, os profetas de Deus eram aqueles que diagnosticavam o presente e apontavam soluções para o futuro, denunciavam que havia morte na panela, que havia injustiça, que havia crise moral. Agora, parece-me que nos esquecemos que profecia não fala de futuro, fala de verdade moral, condena o aviltamento dos valores da família e defende uma postura progressista nas questões de justiça racial, apenas para citar exemplos.

Como cristão, vejo crianças abandonadas em lagoas para que morram à própria sorte, vejo crianças atiradas pela janela, vejo a explosão da pedofilia na Internet. Segundo a

Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, uma criança é abusada sexualmente no Brasil a cada 8 minutos. Senhor, não posso ficar de braços cruzados diante desse descalabro! Não posso dormir um sono tranqüilo ouvindo o pedido de socorro de tantas crianças. Há pouco mais de um mês uma lei de minha autoria criou o Programa Municipal de Conscientização e Combate ao Abuso Sexual e à Violência contra a Criança. Agora, os funcionários de creches serão treinados para identificar e ajudar crianças em perigo, e esse é apenas o começo: a formação se estenderá a médicos, guardas-civis, conselheiros tutelares etc.

É isso é ainda tão pouco! Em uma sociedade capitalista ao extremo, que elogia a competição, que premia apenas os mais fortes, que sacrifica o Planeta em favor do lucro, que ouve apenas os testemunhos de sucesso financeiro, que exclui radicalmente os mais pobres, nesta sociedade, quem levantará o seu cajado no deserto para lembrar dos idosos, das crianças, da gestante, da viúva? Onde está o papel da Igreja como consciência profética?

Sim, continuamos sendo chamados a ser o sal da terra. Sabe que o sal serve não apenas para dar sabor à carne? Ele é também usado para impedir que ela apodreça. Por isso, não desisto de colocar meu candeeiro no parlamento paulistano, porque acredito que é esse o compromisso do cristão autêntico: fazer brilhar a luz de Cristo o máximo que puder. Aliás, vou além, digo que se minha consciência cristã, se minha fé, não me levar a indignar-me com as injustiças nessa cidade, se ela não me fizer buscar novas soluções para os conflitos que vivemos dia a dia, então, que diferença faz ter fé?
Colaboração: Roberta Lima

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