05/03/2009

O SILÊNCIO

 

O acontecimento seguinte teve lugar cinco dias depois. Já era tarde da noite, e estávamos batizando secretamente um bebê trazido por Omatsu e dois homens pertencentes aos tossama. Era nosso primeiro batismo desde que chegamos no Japão, e naturalmente não tínhamos velas nem música na nossa pequena cabana - o único instrumento para a cerimônia era uma xícara rachada e pequena de camponeses que usamos para a água benta. Porém, ver aquela pobre cabana com um bebê chorando e Omatsu procurando acalmá-lo, enquanto um dos homens mantinha guarda do lado de fora, era mais emocionante que assistir à liturgia de qualquer catedral. Vibrei de alegria quando ouvi a voz solene de Garrpe recitando as orações do batismo. É uma felicidade que só um missionário em terra estranha pode apreciar. Quando a água desceu pela testa, a criancinha franziu o rosto e berrou bem alto. Sua cabeça era pequenina; seus olhos, estreitos; já era um rosto de camponês que, com o tempo, haveria de parecer-se com o de Mokichi e Ichizo. Aquela criança também cresceria como seus pais e avós, para viver uma existência miserável face a face com o mar negro naquela terra desolada; ela também viveria como um animal. E como um animal haveria de morrer. Mas Cristo não morreu pelo que é bom e belo; o duro é morrer pelos miseráveis e corruptos - essa foi a percepção que me tocou agudamente naquele momento.

Trecho de minha mais recente leitura, O silêncio, de Shusaku Endo. A obra consiste num romance a respeito da história da chegada dos primeiros missionários cristãos ao Japão, no final do século XVI e início do século XVII - um período de bonança inicial seguido pelas mais diversificadas formas de perseguição e dificuldades evangelísticas.

ESCRITO POR CAMILA METAMORFOSEANTEMENTE

Nenhum comentário:

Postar um comentário

A boca fala do que está cheio o coração.